É
possível identificar no momento atual do Brasil alguns ingredientes
necessários para o desastre
Quando
a guerra civil começou em Angola, em 1975, eu tinha 15 anos. Vivi
aqueles dias com mais euforia do que inquietação. Acreditava, como
a maioria dos angolanos, que a guerra era um episódio terrível, mas
que depressa passaria, e que depois disso viveríamos dias luminosos
num país independente e mais justo.
Lembro-me que dançávamos enquanto os
morteiros explodiam, e balas tracejantes riscavam as noites. Os
jovens militantes dos diferentes movimentos saíam das festas para
fazer a guerra e voltavam ao amanhecer para terminar as cervejas,
como se os combates fizessem parte da folia.
Logo a euforia acabou, mas os tiros não.
Finalmente, a 22 de fevereiro de 2002, o líder da guerrilha, Jonas
Savimbi, foi morto em combate. A bala que o matou foi a última a ser
disparada. Contudo, já Angola estava destruída.
Não consigo imaginar pior tragédia para
um país do que uma guerra civil. Uma guerra civil começa antes que
alguém dispare o primeiro tiro, e as suas consequências
prolongam-se décadas para além do último morto.
A receita para uma guerra civil exige, em
primeiro lugar, a criação de uma cultura de exclusão. Regra geral,
os movimentos em confronto não defendem posições novas. A novidade
é a agressividade com que as defendem e a convicção de que não
existe conciliação possível entre os diferentes projetos.
Amigos de toda uma vida zangam-se.
Famílias separam-se. As mães proíbem os filhos de conversar sobre
política à hora das refeições. Emergem líderes messiânicos, com
um discurso de ódio, eventualmente exibindo armas de fogo, enquanto
exploram velhos rancores partidários e fraturas sociais.
Logo surgem os primeiros assassinatos e
atentados com motivação política. O Estado vai-se esboroando e
perdendo terreno.
Muitas vezes, a cultura de exclusão, que
serve de gatilho à guerra, é importada, obedecendo a interesses ou
estratégias de outros países. Foi o que aconteceu em Angola, com os
Estados Unidos e a União Soviética a combaterem no terreno através
não só dos movimentos angolanos, mas também de tropas
sul-africanas, cubanas e zairenses, bem como de mercenários
portugueses, ingleses e americanos.
No limite, uma guerra civil pode destruir
completamente um país, apagando-o dos mapas, como aconteceu com a
Iugoslávia. Viajando pela Sérvia ou pela Croácia anda é possível
encontrar pessoas que continuam a reconhecer-se como iugoslavos:
“Antes de a guerra começar”, disse-me um desses órfãos, “eu
nem sequer sabia que a minha família era sérvia ou que os meus
vizinhos eram muçulmanos. Éramos todos iugoslavos, falávamos a
mesma língua e tínhamos um destino comum”.
É possível identificar no momento que
se vive hoje no Brasil alguns dos ingredientes necessários para o
desastre. Em épocas assim, a primeira vítima costuma ser o bom
senso.
Quero acreditar, porém, que ainda exista
espaço para um diálogo o mais aberto possível, de forma a permitir
a convergência de todas as forças políticas e da sociedade civil
que defendam a paz e a democracia. Ao longo das próximas semanas
assistiremos a um combate entre construtores de pontes e construtores
de muros. Pobre Brasil se os construtores de muros ganharem.
O Brasil, um país amado no mundo inteiro
pela sua cultura, pela sua alegria e generosidade, não pode permitir
que o ódio se alastre e triunfe.
José
Eduardo Agualusa,
in O
Globo, 12.10.2018
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