“…acho que não se pode avaliar o que
move um escritor sem uma noção de seu desenvolvimento inicial. O
assunto será determinado pela época em que ele vive — isso é
verdade ao menos em épocas tumultuosas e revolucionárias como a
nossa — , mas antes de começar a escrever ele já terá
adquirido uma atitude emocional da qual jamais se livrará de todo.
A tarefa é, sem dúvida, disciplinar o
temperamento e evitar ficar empacado em alguma etapa imatura ou em
algum estado de ânimo perverso: mas, se se livrar completamente das
influências iniciais, terá aniquilado o impulso para escrever.
Pondo de lado a necessidade da
subsistência, creio que há quatro grandes motivos para escrever, ao
menos para escrever prosa. Eles existem em diferentes graus em cada
escritor, e num dado escritor as proporções variarão de quando em
quando, conforme a atmosfera em que ele vive.”
O desejo de ser engenhoso, de ser
comentado, de ser lembrado após a morte, de se desforrar de adultos
que o desdenharam na infância e por aí afora. É uma falsidade
fazer de conta que este não é um motivo, e um motivo forte.
Escritores compartilham esta característica com cientistas,
artistas, políticos, advogados, soldados, homens de negócios
bem-sucedidos — em suma, toda a camada superior da humanidade.
A grande massa de seres humanos não tem
um egoísmo agudo. Mais ou menos depois dos trinta, abandonam a
ambição individual — em muitos casos, de fato, quase
abandonam inteiramente a noção de serem indivíduos — e vivem
sobretudo para os outros, ou simplesmente se deixam sufocar pelo
trabalho enfadonho. Mas também existe a minoria de pessoas
talentosas e obstinadas decididas a viver a vida até o fim, e os
escritores pertencem a essa classe. Devo dizer que escritores sérios
são, de modo geral, mais vaidosos e egocêntricos do que
jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2. Entusiasmo estético.
A percepção da beleza no mundo externo ou, de outro lado, nas
palavras e em seu arranjo correto. Prazer no impacto de um som sobre
outro, na firmeza de uma boa prosa ou no ritmo de uma boa história.
O desejo de compartilhar uma experiência é valioso e não se deve
deixar escapar. O motivo estético é muito débil numa porção de
escritores, mas mesmo um panfleteiro ou um escritor de livros
didáticos terá palavras e frases prediletas que lhe agradam por
razões não utilitárias; ou terá preferências por tipografia,
largura de margens e assim por diante. Acima do nível de um guia
ferroviário, nenhum livro está inteiramente isento de considerações
estéticas.
3. Impulso histórico.
O desejo de ver as coisas como elas são, de encontrar fatos
verídicos e guardá-los para o uso da posteridade.
4. Propósito político — a
palavra “político” entendida aqui em seu sentido mais amplo. O
desejo de lançar o mundo em determinada direção, de mudar as
idéias das pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se
esforçar para alcançar. Também neste caso ninguém está
verdadeiramente isento de tendências políticas. A opinião de que
arte não deveria ter a ver com política é em si mesma uma atitude
política.”
“Pode-se perceber como esses diferentes
impulsos são antagônicos e variam de pessoa para pessoa, de época
para época. Por natureza — considerando “natureza” o
estado a que se chega quando se fica adulto — , sou uma pessoa
para quem os três primeiros têm mais importância do que o quarto.
Numa época de paz, poderia ter escrito livros floreados ou meramente
descritivos e ficado quase alheio a minhas lealdades políticas.”
“O que mais desejei fazer nos últimos
dez anos foi transformar escrita política em arte. Meu ponto de
partida é sempre um sentimento de proselitismo, uma sensação de
injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim
mesmo: Vou produzir uma obra de arte”.
Escrevo porque existe uma mentira que
pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e
minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não
conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista,
se não fosse também uma experiência estética.
Quem se dispuser a examinar meu trabalho
perceberá que, mesmo quando é uma clara propaganda, contém muito
do que um político de tempo integral consideraria irrelevante. Não
sou capaz de abandonar por completo a visão de mundo que adquiri na
infância, nem quero.
Enquanto viver e estiver com saúde,
continuarei a ter um forte apego ao estilo da prosa, a amar a
superfície da Terra, a sentir prazer com objetos sólidos e
fragmentos de informações inúteis. De nada adianta tentar reprimir
esse meu lado. O trabalho é conciliar os gostos e os desgostos
arraigados com as atividades essencialmente públicas, não
individuais, que esta época impõe a todos nós.”
“De qualquer maneira, creio que na hora
em que aperfeiçoamos um estilo de escrita sempre o superamos. A
revolução dos bichos foi o primeiro livro em que tentei, com plena
consciência do que fazia, amalgamar os propósitos político e
artístico. Faz sete anos que não escrevo um romance, mas espero
escrever outro muito em breve.
Será fatalmente um fracasso, todo livro
é um fracasso, porém tenho uma clara noção do tipo de livro que
pretendo escrever.”
“Todos os escritores são vaidosos,
egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um
mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como
um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se
incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao
qual não se pode resistir nem entender.
Porque todo mundo sabe que esse demônio
é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção
aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível
escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria
personalidade.
A boa prosa é como uma vidraça. Não
sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei
qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo
que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi
livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases
sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades.”
George Orwell, in Dentro da Baleia
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