segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Por que escrevo (excertos)

“…acho que não se pode avaliar o que move um escritor sem uma noção de seu desenvolvimento inicial. O assunto será determinado pela época em que ele vive — isso é verdade ao menos em épocas tumultuosas e revolucionárias como a nossa — , mas antes de começar a escrever ele já terá adquirido uma atitude emocional da qual jamais se livrará de todo.
A tarefa é, sem dúvida, disciplinar o temperamento e evitar ficar empacado em alguma etapa imatura ou em algum estado de ânimo perverso: mas, se se livrar completamente das influências iniciais, terá aniquilado o impulso para escrever.
Pondo de lado a necessidade da subsistência, creio que há quatro grandes motivos para escrever, ao menos para escrever prosa. Eles existem em diferentes graus em cada escritor, e num dado escritor as proporções variarão de quando em quando, conforme a atmosfera em que ele vive.”
São eles:
1 — Puro egoísmo.
O desejo de ser engenhoso, de ser comentado, de ser lembrado após a morte, de se desforrar de adultos que o desdenharam na infância e por aí afora. É uma falsidade fazer de conta que este não é um motivo, e um motivo forte. Escritores compartilham esta característica com cientistas, artistas, políticos, advogados, soldados, homens de negócios bem-sucedidos — em suma, toda a camada superior da humanidade.
A grande massa de seres humanos não tem um egoísmo agudo. Mais ou menos depois dos trinta, abandonam a ambição individual — em muitos casos, de fato, quase abandonam inteiramente a noção de serem indivíduos — e vivem sobretudo para os outros, ou simplesmente se deixam sufocar pelo trabalho enfadonho. Mas também existe a minoria de pessoas talentosas e obstinadas decididas a viver a vida até o fim, e os escritores pertencem a essa classe. Devo dizer que escritores sérios são, de modo geral, mais vaidosos e egocêntricos do que jornalistas, embora menos interessados em dinheiro.
2. Entusiasmo estético. A percepção da beleza no mundo externo ou, de outro lado, nas palavras e em seu arranjo correto. Prazer no impacto de um som sobre outro, na firmeza de uma boa prosa ou no ritmo de uma boa história. O desejo de compartilhar uma experiência é valioso e não se deve deixar escapar. O motivo estético é muito débil numa porção de escritores, mas mesmo um panfleteiro ou um escritor de livros didáticos terá palavras e frases prediletas que lhe agradam por razões não utilitárias; ou terá preferências por tipografia, largura de margens e assim por diante. Acima do nível de um guia ferroviário, nenhum livro está inteiramente isento de considerações estéticas.
3. Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como elas são, de encontrar fatos verídicos e guardá-los para o uso da posteridade.
4. Propósito político — a palavra “político” entendida aqui em seu sentido mais amplo. O desejo de lançar o mundo em determinada direção, de mudar as idéias das pessoas sobre o tipo de sociedade que deveriam se esforçar para alcançar. Também neste caso ninguém está verdadeiramente isento de tendências políticas. A opinião de que arte não deveria ter a ver com política é em si mesma uma atitude política.”
Pode-se perceber como esses diferentes impulsos são antagônicos e variam de pessoa para pessoa, de época para época. Por natureza — considerando “natureza” o estado a que se chega quando se fica adulto — , sou uma pessoa para quem os três primeiros têm mais importância do que o quarto. Numa época de paz, poderia ter escrito livros floreados ou meramente descritivos e ficado quase alheio a minhas lealdades políticas.”
(…)
O que mais desejei fazer nos últimos dez anos foi transformar escrita política em arte. Meu ponto de partida é sempre um sentimento de proselitismo, uma sensação de injustiça. Quando sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: Vou produzir uma obra de arte”.
Escrevo porque existe uma mentira que pretendo expor, um fato para o qual pretendo chamar a atenção, e minha preocupação inicial é atingir um público. Mas não conseguiria escrever um livro, nem um longo artigo para uma revista, se não fosse também uma experiência estética.
Quem se dispuser a examinar meu trabalho perceberá que, mesmo quando é uma clara propaganda, contém muito do que um político de tempo integral consideraria irrelevante. Não sou capaz de abandonar por completo a visão de mundo que adquiri na infância, nem quero.
Enquanto viver e estiver com saúde, continuarei a ter um forte apego ao estilo da prosa, a amar a superfície da Terra, a sentir prazer com objetos sólidos e fragmentos de informações inúteis. De nada adianta tentar reprimir esse meu lado. O trabalho é conciliar os gostos e os desgostos arraigados com as atividades essencialmente públicas, não individuais, que esta época impõe a todos nós.”
(…)
De qualquer maneira, creio que na hora em que aperfeiçoamos um estilo de escrita sempre o superamos. A revolução dos bichos foi o primeiro livro em que tentei, com plena consciência do que fazia, amalgamar os propósitos político e artístico. Faz sete anos que não escrevo um romance, mas espero escrever outro muito em breve.
Será fatalmente um fracasso, todo livro é um fracasso, porém tenho uma clara noção do tipo de livro que pretendo escrever.”
(…)
Todos os escritores são vaidosos, egocêntricos e ociosos, e bem no fundo de seus motivos jaz um mistério. Escrever um livro é uma luta horrível e exaustiva, como um prolongado ataque de uma enfermidade dolorosa. Ninguém jamais se incumbiria de tal coisa se não fosse impelido por um demônio ao qual não se pode resistir nem entender.
Porque todo mundo sabe que esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que faz um bebê chamar a atenção aos berros. E no entanto também é verdadeiro que é impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade.
A boa prosa é como uma vidraça. Não sei dizer com certeza qual de meus motivos é o mais forte, mas sei qual deles merece ser seguido. E, ao reexaminar minha obra, percebo que foi sempre onde me faltou um propósito político que escrevi livros sem vida e fui induzido a escrever passagens floreadas, frases sem significado, adjetivos decorativos e, em geral, falsidades.”
George Orwell, in Dentro da Baleia

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