Seamos
t'dos locos
Santa
Teresa
As
pessoas que frequentam o Café Vermelhinho, em frente à ABI - centro
das jovens artes plásticas do Rio, e onde, depois das lides diárias,
alguns escritores costumam também descansar o espírito - conhecem,
pelo menos de vista, o alagoano Antônio Galdino da Silva, autor do
inocente poema que hoje vos trago para vos purificar dos males de
serdes sociais. Trata-se, o poeta, de um caboclo escuro, cor de
melaço rico, com uns olhos distantes e um bigodinho frio num rosto
vigoroso e franco de nordestino. Capenga, passeia-se itinerante, a
bengala quase chapliniana numa das mãos, na outra um leque de
bilhetes de loteria, num trabalho persuasivo de oferecer fortunas,
mas que nunca chega a ser maçante.
Não
há aluno da Escola de Belas-Artes que não lhe queira bem. Tenho
certeza de que numa batalha estudantil, Antônio Galdino da Silva
brigaria até o fim em defesa de sua gente - e nisso ele me recorda o
velho português Carmona, da Faculdade de Direito do meu tempo, que
um dia passou as manoplas duras como um cadeado em volta das grades
do portão da Escola e explicou aos tiras, que do lado de fora se
esforçavam por entrar: “Nos meus m'ninos ningaim bate!”.
Antônio
Galdino da Silva apareceu de repente fazendo poesia. Alfredo
Ceschiatti, escultor novo do grupo revolucionário das Belas-Artes,
cuja figura sonolenta como que já se vai fixando pictoricamente
entre as vermelhidões do agitado Café carioca, compareceu-me outro
dia com essa “Santíssima Noemy, em Prece a Deus pelo seu Destino e
sua Felicidade”, que Sombra ora vos dá como iguaria rara, em
bandeja de prata. O poema, não saberia dizer como, levou-me atrás...
ao tempo em que eu, menino de 18 anos, descobria, entre confuso e
maravilhado, no sossego de Itatiaia, a música do texto das
Iluminações, de Itaiaia, a música do texto das Iluminações,
de Rimbaud, e deixava-me levar, bêbado de poesia, no seu louco
navio, em meio aos “azuis verdes” do mar e do céu confundidos
pela visão do poeta. Não poderia explicar a aproximação. Não há
nenhuma semelhança efetiva entre esses dois lirismos. São
inocências diversas, fruto de naturezas diferentes. Talvez, quem
sabe, a mesma tendência em ambos para a sabedoria das palavras
inexistentes, inventadas no paroxismo da criação, e capazes de
confundir num só organismo cores, climas, perfumes, imagens e ritmos
perdidos - quem sabe...
É
realmente extraordinário. Um poema nasce de um voto de amor, e
súbito, no milagre de uma palavra, reúne tudo o que, de tão vago,
poeta nenhum saberia dizer diferentemente sem se tornar banal:
Em
sua vida cheia de inverderume céu!
Inverderume
tem tudo: o inverno, a cor verde dos campos, uma luz que não chega a
se precisar, a ideia da divindade feminina, um amanhecer e uma tarde.
E depois deste achado, o poeta atinge, sem mais, uma altitude
bíblica. A linha seguinte contém todo o mistério da mulher em sua
santidade física. Esses acatos das trevas alucinantes são uma das
coisas mais doidas que já li. Como interpretar, sem desfazer o mundo
do sentido que circula no espaço dessas três palavras? Poderá
haver sublimação maior?
Dos
seus acatos das trevas alucinantes...
Em
sacraremos das suas inlomares
Que
vem-me varejando os meus clarins.
E
por quem é que vou gritando neste caminho?
É
por Deus! é por Deus! é por Deus do céu!...
Parece
Isaías. Não são muitos os momentos maiores no tremendo poeta
bíblico. Os versos descem numa candência onde se alternam os mais
terríveis gritos e as mais litúrgicas pacificações. O verso: Em
sacraremos das suas inlomares solta pombas místicas no corpo
silencioso de uma nave. O decassílabo que se segue é Guernica, de
Picasso, sem tirar nem pôr. Os dois versos finais da estrofe são
como a memória de outras vozes, as dos Profetas, a de Saulo na
estrada de Damasco, perseguido de Deus.
Isso
tudo, tão alto porque tão inocente. Se houvesse propósito, alguns
desses versos perderiam talvez em conteúdo, embora me pareça que
sua qualidade formal independa do fato de terem sido feitos por um
homem simples. Mas sabermos que foram escritos por Antônio Galdino
da Silva, bilheteiro, dá-lhes um panejamento insopitável.
Aqui
e ali, o poeta lembra Augusto Frederico Schmidt, o Schmidt dos poemas
proféticos e do “Canto da noite”:
Noemy
anda perdida nas matas do Araquém?
Não!
Não! Ainda não! Noemy está pensando
Está
sonhando, está dormindo em casa
Da
sua amiguinha e companheira inseparável!...
Só
Schmidt é capaz de trabalhar conscientemente um valor poético de
surpresa com tão cândida mestria. Senão, confronte-se:
Penso
num vago luar, penso na estrela
Na
andorinha do céu avoando avoando...
Adeus,
Julieta, vou fugir daqui!
(“O
canto da noite”)
Em
certos trechos surge o músico, o modinheiro que vive em potencial na
alma brasileira de Antônio Galdino da Silva, trazendo acordes de
frases suburbanas à Uriel Lourival, o divino poeta da valsa “Mimi”:
..........
e o sol brilha elegantemente
Se
debruça aos meus pés chorando tanto
Que
por uma credencial do sol brilhante
E,
espafadamente, é de minha Aleluia, Aleluia!...
Não
vos poderei dizer mais. Relede o poema no silêncio de vós mesmos, e
meditai depois sobre este verso puríssimo de um homem do povo que
ganha a vida vendendo bilhetes, e cuja cor, no espectro, reúne todas
as cores:
Felizes
não são estes ainda que me veem de longe…
Vinicius
de Moraes, in
Prosa
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