Senhoras
Senhores
Camaradas
As
rãs estão pedindo um rei. Fatigaram-se depressa da liberdade
precária ultimamente conseguida e ora suspiram, ora se esgoelam por
um governo rijo que estabeleça ordem na lagoa.
Liberdade
bem precária, isto facilmente se percebe: existe nas folhas, nos
meetings, nas conversas das ruas, mas ameaçada a qualquer
momento por um decreto 8063 ou por outra lei estrangeira, polaca ou
malaia, coleção de artigos e parágrafos que vêm da sombra e nos
batem na cabeça, nos atordoam, duros como cacetes. Não estão os
paraenses isentos de uma constituiçãozinha arranjada pelo Sr.
Barata, e amanhã podem os mineiros aguentar, em resumo outorgado, as
ideias e a sintaxe do Sr. Benedito Valadares. Nada nos preserva de
incômodas surpresas que se alinham no papel ou declamam no rádio.
Contudo
muito nos disciplinamos — e hoje somos induzidos a julgar conquista
valiosa o direito que as gazetas alcançaram de agredir sujeitos
sérios, dizer deles, com justiça ou sem justiça, cobras e
lagartos. Consideramos isso, bem erradamente, vantagem nossa e nem
investigamos a razão de certos ataques. Saímos do escuro e vivemos
a deslumbrar-nos à toa. Afeitos à obediência, esperamos na fila
que o ascensorista nos abra a porta do elevador, ríspido e lento,
comprima um botão, e se o condutor nos cobra a passagem duas vezes,
largamos o níquel e nem piamos: na liquidação do Estado Novo,
ascensoristas, condutores e passageiros ainda não conseguimos
corrigir-nos.
Mas
é evidente que existem por aí certas licenças, pedaços de
licenças, arrancados a fórceps em partos dolorosos. Será razoável
imaginarmos que a oposição, pelo menos parte essencial da oposição,
tenciona, empoleirando-se, olhar com simpatia as nossas manifestações
em comícios, artigos, faixas e cartazes? Não, não é razoável
supormos isso. Há indicações de que ela não tem semelhante
desígnio.
As
rãs estão pedindo um rei. Praticamente é um rei que elas desejam.
De outra forma, não se compreenderia esse horror à Constituinte,
que há meses, se não nos enganamos, reclamavam com vigor e celeuma
terrível: quase deitaram o mundo abaixo exibindo juízos de
instituições sabidas e importantes. Por que torceram caminho? Ou
muito nos equivocamos ou devemos isto ao fato de outras rãs,
pequenas, entrarem a coaxar a mesma exigência a que elas se
aferravam. E aí notaremos que uma palavra, conforme o ambiente onde
é empregada, pode traduzir conceitos diversos. A Constituinte
defendida por proprietários gordos e de boa figura diverge da
Constituinte em que operários magros e canhestros ousam entender
representar-se.
Neste
país fervilham os democratas. Quem há por aí capaz de afirmar que
não é democrata? Já tivemos até uma democracia autoritária. A
imprensa era então bastante comedida, o que não significa, de
maneira nenhuma, redução nos bons negócios. Agora se descomediu.
Findou a censura — e toda a gente respirou com alívio.
Pensam
que realmente ela findou? Não, senhores, a censura não findou. E,
para demonstrar isto, vou citar um caso há dias publicado, mas que
passou despercebido, por não ser conveniente aos pretensos mentores
da opinião pública nenhum comentário a ele. O poeta Carlos
Drummond de Andrade teve um trecho de colaboração amputado por um
desses jornais que ofendem o major Amílcar Dutra de Meneses. Será
possível julgarmos que noticiaristas e repórteres hajam pretendido
emendar a literatura de Carlos Drummond de Andrade? Não. Carlos
Drummond de Andrade é um dos maiores escritores nacionais, suponho
que nunca houve melhor. Todas as pessoas que usam tinta sabem isto e
nenhuma cai na tolice de mexer-lhe numa vírgula ou numa preposição.
Por que se cortaram, pois, alguns períodos em crônica de Carlos
Drummond de Andrade? Apenas porque havia neles ideias contrárias às
ideias ou aos interesses de uma empresa jornalística. Essas ideias
condenadas não eram exóticas, relativas à foice e ao martelo, dois
instrumentos nocivos que devemos eliminar com urgência: eram ideias
sãs, nada prejudiciais a Deus, à pátria, à família, palavras
dificilmente utilizáveis hoje contra nós.
Consequência:
não existe na Rússia liberdade de pensamento, e o comunismo é
antibrasileiro. Os russos não pensam e nenhum de nós é brasileiro.
Pensamento há na cabeça do indivíduo que surrupiou várias linhas
de Carlos Drummond de Andrade; e cavalheiros monopolizadores do
patriotismo falam em nome do Brasil excluindo sem cerimônia
verdadeiras multidões.
Seria
demasiado esperarmos rigor e lógica de certos espíritos, mas na
verdade essas trapalhices nos assustam. Depois de longos anos de
silêncio e morte, quando enxergamos em toda a parte uma
ressurreição, há quem deseje afastar-nos do resto do mundo e se
expresse em voz alta, com ingenuidade pasmosa: “Estamos fora de
tudo isso.” Nenhuma consulta à nação, apenas o lugar-comum
badalado por muito reacionário que agora se disfarça, muda a camisa
e a linguagem. Nada de Constituinte. Um chefe apenas. Um chefe que
nos faça recuar séculos.
As
rãs estão pedindo um rei.*
Graciliano
Ramos, in Garranchos
*Referência
a uma fábula de Esopo. Como as rãs se encontravam insatisfeitas por
não ter um líder, pediram que Júpiter lhes destinasse um rei. O
deus, rindo do pedido, jogou um toco de madeira na lagoa em que esses
pequenos anfíbios se encontravam. De início, as rãs ficaram
apavoradas com o estrondo causado pela queda do objeto, passando a
reverenciar o pedaço de madeira como o suposto rei ofertado. Porém,
tão logo perceberam que ele não passava de algo inerte, tornaram a
fazer o pedido ao deus, manifestando o mesmo descontentamento
inicial. Irritado com a reincidência da súplica, Júpiter enviou
uma cegonha que passou a devorar as rãs uma por uma. Estas passaram
a se lastimar por terem caído nas mãos de um tirano. Em resposta,
Júpiter lhes disse: “Andai para loucas, já que vos não
contentastes do primeiro Rei, sofrei esse, que tanto me pedistes”
(ESOPO. Fábulas . São Paulo: Cultura, 1943, p. 75).
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