segunda-feira, 1 de julho de 2019

Os filhos da Serpente

Segundo evidências antropológicas e arqueológicas, os antigos caçadores-coletores eram animistas, isto é, não acreditavam na existência de uma distância necessária entre os humanos e os outros animais. O mundo — isto é, o vale local e as cadeias de montanhas ao redor — pertencia a todos os seus habitantes, e todos seguiam um conjunto de regras comum. Essas regras envolviam uma negociação incessante entre todos os seres aos quais concerniam. As pessoas falavam com animais, árvores e pedras, e também com fadas, demônios e fantasmas. Dessa rede de comunicações emergiam os valores e as normas que comprometiam igualmente humanos, elefantes, carvalhos e assombrações.
Essa visão animista do mundo ainda orienta algumas comunidades de caçadores-coletores que sobreviveram na era moderna. Uma delas é representada pelo povo Nayaka, que vive nas florestas tropicais no sul da Índia. O antropólogo Danny Naveh, que estudou os Nayaka durante vários anos, relata que, quando um deles caminha pela floresta e depara com um animal perigoso, como um tigre, uma serpente ou um elefante, dirige-se ao animal e diz: “Você vive na floresta. Eu também vivo na floresta. Você veio até aqui para comer, e eu vim até aqui para juntar raízes e tubérculos. Não vim aqui para machucá-lo”.
Uma vez um Nayaka foi morto por um elefante macho que era chamado de “o elefante que sempre caminha sozinho”. Os Nayaka recusaram-se a ajudar os funcionários do departamento florestal indiano na captura do animal. Eles explicaram a Naveh que aquele elefante era muito chegado a outro elefante macho com o qual sempre andava. Um dia o departamento florestal capturou esse segundo elefante e o “elefante que sempre caminha sozinho” passou a demonstrar um comportamento raivoso e violento. “Como se sentiria se sua esposa fosse tirada de você? Foi exatamente isso que aquele elefante sentiu. Os dois às vezes se separavam à noite, cada um seguindo o próprio caminho… mas pela manhã tornavam a se reunir. Naquele dia, o elefante viu seu camarada cair, estirado no chão. Se os dois estavam sempre juntos e alguém atira em um deles, como o outro deveria se sentir?”
Essa postura animista causa estranheza em muitos povos industrializados. A maioria de nós, de maneira automática, considera os animais essencialmente diferentes e inferiores. Isso decorre do fato de nossas tradições mais antigas terem sido criadas milhares de anos após o fim da era dos caçadores-coletores. O Antigo Testamento, por exemplo, foi escrito no primeiro milênio a.C., e suas histórias mais antigas refletem a realidade do segundo milênio anterior a Cristo. Mas no Oriente Médio a era dos caçadores-coletores havia terminado mais de 7 mil anos antes. Não surpreende, portanto, que a Bíblia rejeite crenças animistas e que sua única história com essa característica apareça logo no início, como uma ameaça de calamidade. A Bíblia é um longo livro repleto de milagres, eventos assombrosos e maravilhas. Entretanto, a única ocasião em que um animal entabula uma conversa com um ser humano é quando a serpente incita Eva a comer do fruto proibido do conhecimento. (A mula de Bil’am também pronuncia algumas palavras, porém ela está apenas transmitindo uma mensagem de Deus.)
No Jardim do Éden, Adão e Eva viveram como coletores. A expulsão do Paraíso tem uma semelhança notável com a Revolução Agrícola. Em vez de permitir a Adão que continue a coletar frutas silvestres, um Deus irado o condena a “comer o pão com o suor de seu rosto”. Talvez não seja coincidência, então, o fato de os animais na Bíblia só falarem com humanos na era pré-agrícola do Éden. Que lições a Bíblia extrai desse episódio? Que não se devem dar ouvidos a serpentes e que geralmente é melhor evitar falar com animais e plantas. Isso só pode levar ao desastre.



Mas a história bíblica tem camadas mais profundas e mais antigas de significado. Na maioria das línguas semitas “Eva” significa “serpente” ou mesmo “serpente fêmea”. O nome de nossa mãe bíblica ancestral oculta um mito animista arcaico, segundo o qual as serpentes não são nossas inimigas, e sim nossas antepassadas. Muitas culturas animistas acreditam que os humanos descendem de animais, inclusive de serpentes e outros répteis. A maior parte dos aborígines australianos acreditava que a Serpente Arco-Íris era a responsável pela criação do mundo. Os povos Aranda e Dieri sustentavam que suas tribos especificamente eram originárias de lagartos ou serpentes primordiais que foram transformados em humanos. Na verdade, os ocidentais modernos também acham que evoluíram de répteis. Nosso cérebro é construído em volta de um cerne reptiliano, e a estrutura de nossos corpos corresponde essencialmente à de répteis modificados.
Os autores do livro do Gênesis podem ter preservado um resquício de crenças animistas arcaicas ao escolher o nome de Eva, mas tiveram grande cuidado em ocultar outros traços. O Gênesis diz que, em vez de descender de serpentes, os humanos foram criados divinamente a partir de matéria inanimada. A serpente não é nosso progenitor: ela nos seduz a nos rebelarmos contra nosso Pai celestial. Os animistas consideram os humanos somente outro tipo de animal, ao passo que a Bíblia alega que os humanos são uma criação única e que toda tentativa de reconhecer o animal em nós acaba por negar o poder e a autoridade de Deus. De fato, quando humanos modernos descobriram que efetivamente descendiam de répteis, rebelaram-se contra Deus e deixaram de ouvi-Lo — e até mesmo de acreditar em Sua existência.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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