Imagem: Olga
Lisitskaya | Thinkstock
Todos
os anos, a 31 de dezembro, a família se reunia para contar os
sobreviventes e fazer o cômputo dos recém-nascidos. Pois bem,
naquele ano morrera o Tio Hipólito, meio gira, mas divertido, e que
tinha o apelido de “Que barulho é esse na escada?”, frase que a
toda hora berrava do alto do sótão onde morava e onde recortava
meticulosamente, a tesoura, de revistas e jornais velhos, figurinhas,
estampas e textos, num álbum que não mostrava a ninguém neste
mundo, nem no outro, se para lá o pudesse levar. Afinal, para que
possuirmos álbuns ou colecionarmos coisas, se depois hão de cair
nas mãos de herdeiros ignaros e irreverentes, que as venderão por
atacado ou as relegarão para a ignomínia dos porões escuros, onde
ficarão mofando como trastes... essas queridas coisas para sempre
impregnadas da nossa alma e do nosso carinho?
Pois
foi a alma de Tio Hipólito que seus sobrinhos dilaceraram
literalmente naquele ano, ao deparar entre guinchos irreprimíveis,
logo à primeira página do livro secreto, com o belo retrato do Vovô
Humphreys, o da homeopatia, seguindo-se-lhe a curiosa radiografia de
uma mão atravessada por uma agulha e mais um recorte com a seguinte
trova portuguesa:
“Quando
eu era rapariga,
Minha
mãe recomendou:
Minha
filha, não te cases,
Que
tua mãe nunca casou.”
Embora
não fosse eu da família, mas simplesmente acompadrado nela,
deram-me o álbum para folhear, o que fiz com a maior seriedade e
respeito. Aliás, não podia deixar de admirar o senso artístico com
que estavam distribuídos os textos e figuras em cada página. Só
estranhei um pouco é que os sonetos do festejado poeta Hermes Fontes
aparecessem apenas pela metade e além disso cortados em diagonal —
compreendem? — formando um triângulo retângulo no canto inferior
direito da página, como que a deter a hábil desordem com que nela
se derramavam, digamos, as estampas do “Minas Gerais”, do busto
de Alexandre Herculano, das quatro mulheres vocalizantes anunciando,
sílaba a sílaba, a Lu-go-li-na, e assim por diante.
Outra
coisa que me causou espécie foi que, da “minha” Vênus de
Botticelli, apareceu-me unicamente a cabeça decapitada, com aquela
cabeleira espantosamente viva e oval angélico de seu rosto
inclinado.
Fiquei
triste, porque o Nascimento de Vênus é dessas coisas que
sempre me fizeram bem aos olhos e portanto à alma. Em compensação,
mais adiante, encontrei-lhe o busto e os seios, embaixo da gravura da
Primeira Locomotiva. Não pude mais: pus-me a folhear aflitamente o
álbum, como quem procura desesperadamente os restos da bem-amada
estraçalhada no mais pavoroso desastre do século.
Encontrei-lhe
os pés brotando, muito alvos, da larga concha marinha, a qual se
equilibrava milagrosamente em cima da calva de um tal de sr. João P.
de Souza Filho, natural de Cataguases, antes de usar Tricomicina. Na
página 27 encontrei a suave curva dos quadris, o ventre... Estava
enquadrada entre duas colunas com os sucessivos instantâneos da
queda de um gato, animal que, como se sabe, sempre cai de pé. Eu é
que quase caí sentado quando, depois de percorrido todo o álbum,
achados os braços, as mãos, os “joelhos sem joelheiras”, o
resto, só não pude encontrar o baixo-ventre...
Fiquei
horrorizado como quando Jack, o Estripador, andava às soltas em
Londres; indaguei, pálido:
— Esse
Tio Hipólito era mesmo um homem muito solitário, não?
— Sim
— cacarejou, com um súbito rancor na voz esganiçada, uma das três
sobrinhas solteironas —, comia no quarto e não gostava de barulho,
especialmente de cacarejo de galinhas. Por sinal que uma madrugada
quase que o mano Juca matou ele. Ouviu barulho no fundo do quintal,
pensou que fosse ladrão, pegou do revólver e se tocou de mansinho
pro galinheiro, mas graças a Deus a noite estava clara e ele viu a
tempo que era o Tio Hipólito segurando uma galinha (já tinha pegado
três) e enrolando esparadrapo no bico do animal, para que não
cantasse mais. O mano Juca se retirou como chegara, sem ser
suspeitado, e ficou acordado até o clarear do dia, pensando no que
devia fazer. E nós também, escutando os protestos dos pobres
animais que pouco a pouco se foram calando um a um e que amanheceram
todos mortos por sufocação. E só o que pudemos fazer no outro dia
foi uma canja de uma das galinhas e mandar as outras onze e o galo
preto para a festa de Natal do Asilo Padre Cacique... O senhor não
leu no jornal? “Generoso gesto das irmãs Fagundes. Um nobre
exemplo a imitar.” Até recortamos. Aqui está.
E
tirou da bolsa o recorte.
Tive
vontade de dizer que o colasse no álbum do Tio Hipólito, o qual
fora parar não sei como nas mãos de um guri da nova safra, que o
estava folheando. Sim, folheando atentamente, e sem rasgar, como
seria de esperar de um pimpolho de onze meses e pico!
— Como
se chama o garoto? — perguntei, para mudar de assunto.
— Ah!
este é o Filho do Livro! — respondeu a mãe da criança, que aliás
era uma linda mãezinha dos seus vinte anos.
— O
Filho do Livro! — disse eu, atônito, para maior divertimento da
gozada mãezinha e do paizinho da criança, um sujeitinho seco e de
fala fina.
— O
senhor sabe... — explicou ele. — A crise... a incertidão da
vida... A gente não queria ter filho já... Compramos o Método
racional da limitação de filhos ... Imagine, um método
recomendado até pelo Papa! Seguimos tudo à risca... e nasceu este
guri.
Tive
vontade de dizer-lhes que eles com certeza é que não tinham tomado
direito certas anotações, como o livro mandava. Mas não disse nada
e fiquei olhando o guri, que por sua vez continuava olhando o
livro... Hururum! O que sairia dali? Um grande escritor, pelo visto?
Ou um novo Tio Hipólito? Tive vontade de dizer muitas coisas que o
assunto comportava. Mas não disse nada. Há muito que a vida me
ensinou a não dizer nada. Agachei-me no chão e fiquei olhando o
álbum junto com o Filho do Livro, ambos muito atentos, muito
calados, muito impressionados, cada qual à sua maneira.
Mário
Quintana, in A vaca e o hipogrifo
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