Na
casa de Leslie e Winifred, Nando passou, durante muito tempo, horas
perfeitas. D. Anselmo lhe estimulava as visitas por sentir que no
debate intelectual contra os dois Nando corrigiria seu lado mais
sonhador e — esta a grande esperança — sairia afinal para o
Xingu, ainda que em parte para provar aos amigos protestantes que não
era um indeciso irrecuperável. Nando não aceitava os longos uísques
com água de coco ou o pink gin que os ingleses tomavam, mas Winifred
tinha o tempo todo seu café em banho-maria. E falava-se. Nando
escapava do mundo mourisco e barroco em que vivia.
— Quando
houver uma perspectiva maior — disse Nando — vai-se ver que houve
três quedas do homem, três expulsões do paraíso: a queda de Adão,
a do Império Romano e a do Império Guarani.
— Ora,
Nando — disse Winifred —, desce desse jeito dogmático. Adão não
é fato histórico, Roma não se acabou num dia. Pelo seu modo de
falar parece que Deus tocou uma trombeta e surgiram da terra
prontinhas as nações bárbaras, enquanto Roma sumia num buraco.
— Nando
tem uma concisão de poeta, minha filha — disse Leslie. — O que
ele lamenta é que todos hoje não falamos latim e não vamos à
missa dele.
— Vocês
estão aí mangando de mim mas sentem como eu a tragédia que é a
Babel moderna, a confusão de incontáveis línguas, o tempo perdido.
Nando
pôs-se a andar pela sala.
— O
Império Romano foi a organização política engendrada pelo Senhor
para o mundo. E assim como o grande poeta pagão de Roma previu na
quarta écloga a vinda de Jesus, com 37 anos de antecipação, o
grande poeta católico de Roma defendeu o aspecto temporal do
Império.
— Dante
já defendia então uma causa mais do que perdida — disse Leslie. —
Ele ainda usava o latim para suas polêmicas mas usou o italiano para
o seu poema. Fazia um epitáfio do Império.
— Nem
por isso é menos verdade o que escreveu — disse Nando.
— Já
não era verdade quando ele escrevia, seu cabeçudo — disse
Winifred. — É isto que Leslie acaba de provar. Aliás o nosso
Gibbon achava que os cristãos, tanto quanto os bárbaros, derrubaram
o Império.
— Um
pobre cego — disse Nando. — Ao surgirem os cristãos o Império
temporal, sozinho, não tinha mais forças para fecundar a Roma
eterna. Foi quando a semente de Cristo caiu nas catacumbas.
— O
amante de Lady Chatterley — disse Winifred.
— Darling!
— disse Leslie.
— Grandezas
e misérias da educação católica militante — disse Winifred. —
Não me conformo vendo um sujeito inteligente como Nando a falar em
segundas quedas e segundas chances como se a história fosse uma
espécie de peça assistida pelo Senhor lá das nuvens.
— A
história das origens se repetiu de uma forma inegável em relação
à América — disse Nando. — No paraíso o homem foi instruído
por Deus, teve sua primeira chance, sua primeira queda. Ergueu-se...
— Humpty-Dumpty
— disse Winifred.
— O
quê? — disse Nando.
— Nada
— disse Leslie —, tolice de Winifred. Continue, Nando.
— Ergueu-se,
sacudiu o pó, evoluiu para a criação lenta da sua obra-prima: o
Imperium Sine Fine. Deixou que Roma tombasse e só com o
descobrimento da América criou Deus o segundo Adão, o indígena.
Organizando os índios guaranis os jesuítas compreenderam o recado
que dava Deus. Fundaram, com o segundo Adão, o segundo Império
Romano, destruído pelos bárbaros paulistas.
— A
segunda chance e o segundo Adão ainda estão aí, nesse caso, à
espera de nova tentativa — disse uma noite Leslie, batendo o
cachimbo na sola do sapato. — Mas vocês não vão aproveitar nem a
chance nem o Adão, a continuarem como agora. Um país novo e já
cheio de mesquinharias.
— Um
ataque frontal — disse Nando. — A troco de quê?
— Eu
sei — disse Winifred. — O túnel.
— O
túnel? — disse Nando.
— Isto
é um exemplo — disse Leslie. — Saiu uma nota num jornal, a
propósito do túnel que tanto amargura Nando. Pois as beatas já
dizem que o túnel teria sido escavado entre os frades e as freiras
pelos holandeses. Só para desmoralizar os católicos. Francamente!
— Absurdo
— disse Nando. — É absurda toda a história maliciosa acerca do
túnel. Eram relativamente comuns essas galerias subterrâneas, como
parte de planos defensivos.
Nando
prosseguiu, rápido.
— Deixando
de lado essas mesquinharias de província, eu pergunto: vale a pena
fazer um novo país no mundo, mais uma nação? Não
estão os homens repetindo e repetindo o mesmo erro?
— Nando
— disse Winifred —, não abra o flanco assim a Leslie. Qual é a
alternativa? Estamos todos de acordo em que seria muito melhor se os
homens do mundo inteiro formassem uma grande nação fraterna.
— Mas
até para isso — disse Leslie — o remédio, segundo Nando, seria
restabelecer o latim, com proibição de qualquer outra língua, e
criar de novo o Império Romano, a partir de um Império de bugres,
com sede no Brasil. Isto me parece um artifício, bastante laborioso,
para impor a nação brasileira ao mundo.
Nando
se levantou, esfregando as mãos, andando pela sala. Como transmitir
a certeza de que havia um sistema?
— Pelo
amor de Deus, Leslie — disse Nando —, não pense que eu imagino
uma Roma conquistadora renascendo no Brasil. De mais a mais não me
sinto com forças. Talvez nem haja mais os meios de organizar os
índios numa outra República. Teríamos de encontrar outros métodos
de cultivar esse último Adão. Mas no limiar do século dezessete,
quando iniciaram sua obra, os jesuítas sentiram que Deus lhes
entregava, em condições históricas, o homem em branco, o homem a
ser escrito. O jardim do Éden se replantava aqui de acordo com todo
o saber da Europa. O alemão Baucke chorou em plena lavoura no dia em
que timidamente o primeiro índio começou a cavar a terra ao seu
lado. O francês Berger convertia os índios tocando violino. O
espanhol Mansilla espremia uvas para que os selvagens provassem o
vinho. Quando perderam suas reduções confederadas em República, os
guaranis construíram cidades, fabricaram foices e alaúdes, martelos
e órgãos. No campanário da igreja de São João Batista, doze
apóstolos circulavam, dando as doze horas do dia, e a porta do
Colégio de São Lourenço fagulhava ao sol com suas joias de cristal
de rocha. A produção comum entrava para os armazéns comuns e se
distribuía entre todos para el bien común. As mulheres
recebiam o fio e entregavam os tecidos. Não havia nem salário, nem
fome. Isto não é lenda, é história. O que os jesuítas chegaram a
anunciar, e o mundo esqueceu, é que o homem não precisa de milênios
para desbastar em si a imagem de Deus que está no fundo.
Nando
parou de andar. Sorriu diante do silêncio dos outros. Sentou-se.
— Se
amolo vocês com minhas histórias — disse Nando — prometo não
voltar ao assunto. Mas palavra que eu gostaria de ver a República
Comunista dos Guaranis estudada até pelos biologistas. Os jesuítas
das Missões não aceleraram a história de um povo. Aceleraram a
evolução da espécie.
Antonio
Callado, in Quarup
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