Sempre
que se fala nos impasses da literatura realista, como agora em O
problema do realismo em Machado de Assis, vibrante ensaio de
Gustavo Bernardo (Rocco), minha mente é ocupada por uma mesma e
insistente recordação. Refere-se à encenação de uma versão
dupla da vida de Vincent Van Gogh, encenada, em 1990, no Rio de
Janeiro, sob a direção de Marcio Vianna (1949-1996). Primeiro, no
subsolo da Aliança Francesa de Copacabana, encenava-se Confessional,
montagem com treze atores destinada ao mesmo número de espectadores.
Um a um, cada espectador era introduzido em um salão escuro e levado
a uma cadeira que, depois ele descobriria, servia de assento a um
confessionário católico. No posto de confessor, o convidado ouvia,
sussurradas através de uma grade, as confissões de cada um dos
treze personagens – além do próprio Van Gogh, seu irmão Theo,
seus pais, o psiquiatra Paul Gachet etc. Eles falavam de suas
difíceis relações com o pintor e sua arte.
Ao
fim do espetáculo, cada espectador carregava consigo uma imagem
parcial, fragmentada e, sobretudo, contraditória de Van Gogh. Em uma
palavra: uma imagem viva. Acesas, enfim, as luzes do salão, mas
conservando seus trajes de época, cada personagem dava a mão a um
dos espectadores e o conduzia pelas ruas de Copacabana, até um ponto
de ônibus. Quinze ou vinte minutos depois, desciam diante do Teatro
Ipanema, onde eram conduzidos até seus lugares na plateia. Apagadas
novamente as luzes, e emitidos os sinais sonoros de praxe, os atores
(os mesmos atores) encenavam então uma visão clássica da vida de
Van Gogh, agora batizada Vincent. A versão oficial consagrada
pelos biógrafos, desempenhada em um clássico “palco italiano”,
isto é, “realista”.
Em
contraste com as complexas confissões ouvidas durante a montagem de
Confessional, a narrativa realista expunha, de modo
escandaloso, seus aspectos não só artificiais, mas fraudulentos. Os
espectadores sentiam um grande desconforto, quando não irritação,
diante daquela impecável encenação realista. Nela, o Realismo, com
suas regras, vícios, falsificações, era desmascarado, revelando-se
não um “espelho da verdade”, como costumamos pensar, mas sim um
assassino da verdade.
Enquanto
a estética realista observa o mundo como um amplo e ordenado painel
no qual os fatos da realidade se encaixam (palco italiano), a versão
antirrealista de Confessional o mostra como de fato é: um
mundo em pedaços, precário e incoerente, onde vivemos uma
existência que por ser subjetiva (e não objetiva) e singular (e não
geral, ou “típica”) conserva seu aspecto vivo. Em Confessional,
o real – esse grande abismo em que, devorados por incertezas,
lutamos para viver – se apresenta em tiras e em fragmentos.
Acreditando no grande painel a que chamamos de realidade, ao
contrário, Vincent o reduz a um monólito, máquina azeitada
que só aceita o desempenho impecável, isto é, a repetição.
Chego,
enfim, ao contundente ensaio de Gustavo Bernardo sobre Machado de
Assis. No Realismo, o leitor observa o mundo (coeso e arbitrário)
desde fora – e apoia-se nessa distância para supor que o domina.
Quando tudo o que vê não é o real (que é desordem e acaso), mas a
realidade (pura maquiagem, convenção).
Em
Confessional, como na literatura de Machado, o mundo não é
uma imagem plana e coerente (“italiana”), mas uma experiência
cega e turbulenta (travessia de um deserto, tedioso e escuro,
iluminado por escassos relâmpagos). Nesse mundo que é puro
movimento, o escritor não se limita a copiar e retratar, mas nele se
joga e atua, nele “é”.
A
montagem dupla de Marcio Vianna, em que uma peça desmente a outra,
me serve hoje como instrumento para, seguindo as pistas luminosas
abertas por Bernardo, reler Machado. Já não como o grande
retratista de seu tempo, mas como um homem nele perdido. Já não
como o grande pai do Realismo brasileiro, mas, como afirma Gustavo
Bernardo com coragem, como o “principal adversário do Realismo”.
A
literatura de Machado, Bernardo mostra, nega a existência de uma
realidade objetiva e descreve um real que é pura agitação,
inconstância e movimento. Para conseguirmos viver, nós o
enquadramos na moldura solene das convenções. O Realismo não
mostra o real, mas o que dele resta quando o comprimimos nos corpetes
da realidade – ela, sim, ilusão ordeira (“italiana”) de um
mundo que é puro fluxo (“confissão”).
No
palco italiano, a posição fixa do espectador permite que ele
observe a cena como quem contempla uma pintura, sendo ele, espectador
(leitor), uma espécie de “quarta parede”. É nesse lugar neutro
e fixo que se coloca o observador realista. Machado, ao contrário, é
um observador nervoso, que suspeita do que vê (ceticismo) e o
manipula à distância (ironia). Só por isso é um gênio, e não um
simples retratista fanatizado por visões reconfortantes.
Lamenta
Gustavo Bernardo que no mundo contemporâneo, dos manuais, graduações
e apostilas, a literatura seja tratada como uma “disciplina”.
Vista assim, como disciplina escolar ligada à história, à
sociologia e às ciências humanas em geral, a literatura se enrijece
e se transforma em um instrumento de controle. Essa atitude
contemporânea, diz Bernardo, configura um danoso “veto da ficção”,
que se passa sempre muito longe de qualquer ambiente vertical e
disciplinar.
A
domesticação da literatura, continua Bernardo, se esconde no falso
problema que divide Machado entre o “romântico”, dos primeiros
romances, e o “realista”, dos romances da maturidade. Ele crê,
ao contrário, que as duas classificações promovem uma mesma forma
de morte do singular. “Não passam de duas maneiras de denegar a
ficção”, resume. A ficção está do lado da suspeita, e não do
dogma, interessa-se pela dúvida, e não pela clareza, amplia e
perfura o grande véu da realidade, em vez de costurá-lo.
A
ficção não mostra o mundo como ele “deve ser”, mas como,
apesar de nossas resistências e fervores, ele insiste em ser.
Machado não escreveu para construir um espelho, plácido e luminoso,
mas, sim, para forjar uma faca. Ainda hoje, precisamos de coragem
para suportar o corte afiado de sua escrita.
José
Castello, in Sábados inquietos
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