domingo, 2 de junho de 2019

Transfiguração da banalidade

Uma vez que eu não posso apagar-me aqui e agora, ou atingir novamente a ingenuidade, é uma loucura continuar a praticar os gestos ordinários de todos os dias. Deve-se a cada instante superar a banalidade, a fim de ter acesso à transfiguração, à expressividade absoluta. Que tristeza ver os homens passarem ao lado de si mesmos, negligenciarem seus destinos ao invés de avivar permanentemente as luzes que portam em si ou de se embriagarem nas tenebrosas profundezas! Por que não extrair da dor tudo o que ela possa oferecer ou cultivar um sorriso até a profundidade da qual ele brota? Nós todos temos mãos e, apesar disso, ninguém pensa em utilizá-las, torná-las expressivas o máximo possível. Nós admiramo-las de boa vontade em pinturas e amamos falar de seu significado, mas não sabemos fazer com que as nossas sejam intérpretes de nossos dramas interiores. Ter uma mão espectral, transparente, como um reflexo imaterial, uma mão nervosa, como que tensa pela última crispação... Ou então uma mão pesada, ameaçadora, terrível. Que a presença e o aspecto destas mãos digam mais do que uma palavra, um lamento, um sorriso ou uma oração. A expressividade total, fruto de uma transfiguração contínua, fará da nossa presença um lar de luz se nosso semblante e, de maneira geral, tudo o que nos individualiza transfigurar-se igualmente. Encontramos seres cuja mera presença significa para o outro agitação, lassitude, ou ainda, iluminação. Sua presença é fecunda e decisiva: fluida, indefinível, parece que ela nos capta num filete imaterial. Eles ignoram o vazio e a descontinuidade; conhecem somente a comunhão e a participação que produzem esta transfiguração permanente cujos cumes são tanto vertigens quanto volúpias.

***

Sinto uma estranha ansiedade que se insinua em todo o meu corpo; seria acaso medo do futuro de minha problemática existência, ou antes, perturbação provocada por minha própria inquietude? Poderei continuar a viver com tais obsessões? O que experimento é vida ou algum sonho tolo? Parece-me que surge em mim a grotesca fantasia de um demônio. Não é, acaso, minha ansiedade uma flor brotando no jardim de uma criatura apocalíptica? O demonismo deste mundo parece estar concentrado inteiramente em minha inquietude - mistura de pesares, visões crepusculares, tristezas e irrealidades. E ele não me faz derramar nenhuma fragrância primaveril no universo, mas a fumaça e a poeira de um desabamento total.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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