Uma
vez que eu não posso apagar-me aqui e agora, ou atingir novamente a
ingenuidade, é uma loucura continuar a praticar os gestos ordinários
de todos os dias. Deve-se a cada instante superar a banalidade, a fim
de ter acesso à transfiguração, à expressividade absoluta. Que
tristeza ver os homens passarem ao lado de si mesmos, negligenciarem
seus destinos ao invés de avivar permanentemente as luzes que portam
em si ou de se embriagarem nas tenebrosas profundezas! Por que não
extrair da dor tudo o que ela possa oferecer ou cultivar um sorriso
até a profundidade da qual ele brota? Nós todos temos mãos e,
apesar disso, ninguém pensa em utilizá-las, torná-las expressivas
o máximo possível. Nós admiramo-las de boa vontade em pinturas e
amamos falar de seu significado, mas não sabemos fazer com que as
nossas sejam intérpretes de nossos dramas interiores. Ter uma mão
espectral, transparente, como um reflexo imaterial, uma mão nervosa,
como que tensa pela última crispação... Ou então uma mão pesada,
ameaçadora, terrível. Que a presença e o aspecto destas mãos
digam mais do que uma palavra, um lamento, um sorriso ou uma oração.
A expressividade total, fruto de uma transfiguração contínua, fará
da nossa presença um lar de luz se nosso semblante e, de maneira
geral, tudo o que nos individualiza transfigurar-se igualmente.
Encontramos seres cuja mera presença significa para o outro
agitação, lassitude, ou ainda, iluminação. Sua presença é
fecunda e decisiva: fluida, indefinível, parece que ela nos capta
num filete imaterial. Eles ignoram o vazio e a descontinuidade;
conhecem somente a comunhão e a participação que produzem esta
transfiguração permanente cujos cumes são tanto vertigens quanto
volúpias.
***
Sinto
uma estranha ansiedade que se insinua em todo o meu corpo; seria
acaso medo do futuro de minha problemática existência, ou antes,
perturbação provocada por minha própria inquietude? Poderei
continuar a viver com tais obsessões? O que experimento é vida ou
algum sonho tolo? Parece-me que surge em mim a grotesca fantasia de
um demônio. Não é, acaso, minha ansiedade uma flor brotando no
jardim de uma criatura apocalíptica? O demonismo deste mundo parece
estar concentrado inteiramente em minha inquietude - mistura de
pesares, visões crepusculares, tristezas e irrealidades. E ele não
me faz derramar nenhuma fragrância primaveril no universo, mas a
fumaça e a poeira de um desabamento total.
Emil
Cioran, in Nos cumes do desespero
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