Desde
que aportou a Curitiba, Chico viveu às margens do rio Belém, sempre
nas unhas o barro amarelo. Para ser feliz deveria, menino, ter
pescado lambari de rabo vermelho. Sonhava fugir para outra cidade —
ah, Nápoles!
Escriturário,
noivo, bigodinho, morou em todas as pensões: Primavera, Floriano,
Bagdá. Definhava ora na sórdida espelunca de nome pomposo, ora na
salinha escura do escritório, a espirrar entre o pó dos papéis.
Eterna promessa de aumentarem o salário ano seguinte — não podia
esperar mais um ano. Perseguia o voo das moscas, contava as rugas na
testa do gerente, errava as contas e, ao receber a correspondência,
indagava do carteiro:
— Alguma
carta de Nápoles?
Sabia
o que era — o chamado das janelas. Em vez de partir, mudava de
emprego, noiva, pensão. Respondia ao primeiro anúncio de
“Precisa-se moço lugar de futuro”. O futuro?
Outra
rua de Curitiba, plátanos antigos na calçada, solteironas à
janela, rio Belém dos quintais miseráveis, os moleques atrás do
lambari de rabo vermelho.
A
salvação era casar, escapulir para o outro lado da cidade, onde a
água do rio não chegasse — com as chuvas alagava os quintais,
cobria os sapatos de lama, os sapos coaxavam na cozinha. Irrompia,
sem aviso, sob os pés; dos amantes distraídos. A prefeitura
ignorava-lhe o curso subterrâneo; rio de pobre, não fora o Belém,
com que água as mães dariam nos piás o banho de sábado?
Trinta
anos, magrinho, bigode preto, Chico fugia do rio. Era moço triste.
Naufragou com seus trastes na pensão Nápoles, não a escolheu pelo
nome. Condenado às pensões baratas que margeiam o rio, partilhando
o quarto com estranhos. Consumiu-lhe as economias o tifo preto do rio
Belém e agora sem emprego. Diante de uma janela, o vento da viagem
arrepiava os cabelos do peito magro:
— O
que na minha idade Alexandre Magno havia...
O
outro olhava-o com espanto.
— Não
fosse o rio... — em cueca na cama, limpando sob a unha uma sombra
de barro.
Com
o tifo até a noiva perdeu, ele sempre noivo! Não conseguia
dispensar uma noiva na sua solidão. Breve namoro, entrava na sala,
elogiava o café com rosquinha. Domingo era certa a galinha com
vinho. Uma casa para se abrigar à noite, em vez de correr na garoa.
Moço sem futuro, a noiva devolvia o anel.
Depois
do tifo preto a pneumonia. Tardes alucinadas de febre, Chico se
lembrava do pai. Severo, não admitia riso. Quando fugiu de casa
imaginou que nem lhe desse pela falta. Nunca escreveu, informando o
endereço, na ronda das pensões. Tarde demais soube que o velho não
deixou retirar seu guardanapo da mesa. A mãe colocava mais um prato,
assim viesse, todos aqueles anos, almoçar e jantar em casa. De
noite, o pai subia ao quarto do rapaz: “Chico, Chico, você
voltou?” Morreu antes que o filho visitasse a família. Agora
sonhava com o velho, ao lado da cama: “Chico, veio para casa, meu
filho?”
Se
matou o próprio pai, não fez mal às noivas. Ó, as noivas de Chico
— a todas amou!
Nem
uma entendeu que não queria ser enterrado com os pés no rio Belém.
Propunha fugirem para outra cidade. Qual das ingratas confiou no seu
amor? À noite rondava-lhes a casa, todas dormiam, esquecido na garoa
fria.
Em
junho é a garoa o céu de Curitiba. Sob a janela de uma ex-noiva
começou a espirrar.
A
dona da pensão Ali Babá não o quis com aquela tosse. Escondido dos
hóspedes, retirado para a enfermaria coletiva. Aquecia-se atrás da
vidraça no raio de sol, os serventes abandonavam uma cama vazia no
pátio — que fim levou o doente?
Depois
do tifo preto e da pneumonia a pensão Nápoles. O nome não o
deixava dormir.
— Nos
engajar marinheiros no primeiro navio?
Cuspia
lá da janela, cuspia sangue contra o rio..
— Não
tem mar, Chico, na tua Curitiba.
Dalton
Trevisan, in Novelas nada exemplares
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