quarta-feira, 12 de junho de 2019

Algumas orientações a respeito da Organização que o Esquema estabeleceu na cidade, colocando ordem e progresso nas ruas

De qualquer modo, estava contente. A sensação tinha começado no fim da manhã. Não quis almoçar, dei a ficha para o colega manco. O homem vive esfomeado, já foi apanhado roubando fichas. Não o denunciaram por compaixão. A mulher dele enlouqueceu durante a praga dos grilos.
Ela está internada, mas as visitas são proibidas. O manco ronda o hospital, tenta entrar, pular o muro. Quase morreu eletrocutado nas cercas. Nada pior que ter sido apanhado nos tempos da praga. Afirmar que se ouviam grilos bastava para ser condenado. Milhares ganharam o Isolamento.
O manco também ficou ofendido. A fome crônica que ele sofre não pode ser normal. A gente come pouco num calor desses. Vamos à lanchonete, uma saladinha de brotos artificiais com salsicha sintética, e pronto. Mal tocamos na comida. O almoço é apenas fuga do trabalho.
A Rádio Geral, na hora do almoço, tocou apenas valsas. O tempo todo. Discos antigos com os Meninos Cantores de Viena. Os meninos devem ter morrido. Ou estão muito velhos, ainda a cantar valsas com vozes trêmulas. Na minha formatura teve valsa, éramos mais de cem pares a dançar, rodopiando.
Adelaide dançava bem, era campeã. No clube, nas domingueiras, ela ainda adolescente não perdia uma só música. Os rapazes adoravam dançar com ela. Alegre, magra, leve, ágil, entusiasmada e cheia de ritmo. Não entendo como abandonou essas coisas para se transformar num rato de igreja.
Ela tem certeza que Deus vai pôr a mão no mundo. Resolver a situação. Outras vezes, fica desesperançada. Tem medo de um novo dilúvio. Já imagino que um dilúvio seria bem-vindo. Encheria tudo de água fria. Vivo ansioso para mergulhar numa poça que seja, boiar por uma semana.
O calor é pior no fim do expediente. O sol está escondido, mas o cimento estala, as pedras racham e devolvem o mormaço. Na calçada, espero o momento até achar uma brecha na fila da direita, direção dos pontos de ônibus. Caminha-se muito devagar, por causa da apatia e da quentura.
Loteria, moço?
Barbatana?
Fotografia para documento?
Lápis?
Medalha?
A fila para, vez ou outra. As pessoas se inquietam. Deve ser alguém discutindo na Boca de Distrito. Cada hora surge um problema. Com gente que perde a ficha de circulação. Que tem prazos vencidos. Que não passou na prova de identidade, que foi apanhada com fichas emprestadas.
Bolsa para fichas?
Graxa?
Meias permeáveis?
Bloco de papel? Bom contrabando.
Discos?
A mão no bolso, comprimo minha ficha. Está gasta nas bordas, é de alumínio vagabundo e sofre muito manuseio. Se estou nervoso, passo o tempo a esfregá-la, como se fosse amuleto. Sem as fichas, não se entra no Centro Esquecido da cidade. A circulação é excessivamente controlada.
Gilete?
Cigarro?
Cinzeiro portátil?
Cotonetes? São raridade.
Na rua, as bicicletas se amontoam. O antigo barulho dos motores foi substituído pelo ruído seco das correntes girando nas rodas dentadas. Milhares de correntes. As buzinas deram lugar a campainhas, assobios, apitos agudos. Xinga-se muito, como nos melhores tempos dos automóveis.
A ausência de veículos não diminuiu a aglomeração, o congestionamento, as confusões. Os ciclistas invadem as faixas de ônibus, sobem nas calçadas, atropelam, muitos se equilibram no meio-fio. Quem fica no meio da multidão sofre. Empurrões, apertos, batidas, pontapés, insultos e bolinações.
Sensação de corrida no jóquei, com os cavalos se atropelando, jogando-se uns contra os outros, os montadores se batendo com chicotes. Ou as corridas de bigas romanas. Ben-Hur. Olhando do alto dos prédios, pode-se ver o rio contínuo de cabeças e pneus, como se fosse água suja.
Tudo funciona no pedal. Os mais bem colocados possuem chofer. Uma ou duas pessoas puxam um pequeno trole, muito leve, onde o Privilegiado vai instalado. Coisa rara de se ver no centro. Os Privilegiados não se arriscam. O povo corre para cima deles, bate, xinga, arranca dos veículos.
Tem gente demais nesta cidade. Um dia, os Departamentos Circulantes verificaram que ninguém podia se mexer. Estavam todos aglomerados, apertados, comprimidos. Praticamente imóveis. Os empregos ficaram vazios, a maioria não conseguiu chegar. A solução foi criar as Áreas de Circulação.
Cada um recebe sua ficha e está autorizado a penetrar em área determinada. As Bocas de Distrito controlam o tráfego. Só entra na região quem tiver a ficha correspondente. Desse modo foi possível diminuir o fluxo. Mesmo assim, as filas nas calçadas tiveram de ser organizadas.
Não há outra possibilidade se quisermos chegar a algum lugar. Toma-se a fila e, com paciência, caminha-se. Ao menos, as pessoas aprenderam a ser pacientes. Não adianta rebelar-se, brigar. Aliás, é perigoso. Alterações por filas e lugares podem significar apreensão da ficha.
As áreas determinadas são razoavelmente extensas e possuem o necessário: restaurante, lojas, lanchonetes, farmácias, bancos, divertimentos. A ideia dessa setorização nasceu em fins da década de cinquenta com a fundação de Brasília. A diferença é que hoje está altamente desenvolvida.
Estudando as cidades mais antigas, os esquemas governantes descobriram que o homem circulava sempre dentro de certos limites. Raramente ultrapassava um número estabelecido de ruas e locais. “Portanto a proibição não vai afetar o sentido de liberdade que o homem goza”, concluíram.
Cheguei à Boca de Distrito, coloquei minha ficha no orifício, atravessei o corredor de metal. Que alívio. Nenhuma denúncia. Não vou passar pela prova de identidade. Se ouvisse dois cliques, teria de mostrar a carteira de identidade e comparar meu número com o número da ficha.
As Bocas de Distrito ficam em plena calçada. São pequenos corredores azuis de meio metro de extensão, eletronizados. A ficha é devolvida à saída. Os que entram na área tomam a calçada da direita; os que saem, a da esquerda. As fichas informam os horários permitidos de frequência.
Tem gente que faz o turno da noite. Suas fichas admitem entrada a partir das dezessete e quinze. As Bocas de Distrito, de entrada e saída, são sincronizadas. Para cada um que sai, permite-se a entrada de um. O número de pessoas nas áreas é controlado rigorosamente. Ou, então, seria o caos.
Sônico Antirratos?
Então me bateu, o nosso está quebrado há quinze dias. Adelaide não me lembrava, ao sair de manhã. Precisa de conserto. Será melhor comprar um novo? A duração desses troços é tão curta. E eles, tão importantes. Viver sem o Sônico é loucura. Ameaça. Para mim e para os outros.
Quanto?
Quinhentos.
Corro perigo sem o Sônico. Posso chegar em casa, uma hora, e vê-la tomada pelos ratos. Tem coisas boas na tecnologia, e o Sônico é uma delas. O aparelho emite um som de alta frequência, que é a reprodução exata de um guincho que o rato produz após a cópula. A rata entende.
Esse guincho significa: “Deixe-me só”. Satisfeito com o impulso sexual, o rato quer um tempo para recuperação. E lança esse grito de Greta Garbo. Os cientistas conseguiram reproduzir com fidelidade o som e evitam assim a proliferação dos animais. O som contínuo afasta as fêmeas dos machos.
O dobro do que custa em loja?
Uai, vai à loja.
Espertos os camelôs. Sabem que odiamos as lojas. Somos obrigados, por decreto, a frequentá-las em nosso Dia de Consumação. Fora desse dia vivemos o Regime da Poupança para Evitar Recessão. Não podemos comprar nada, a não ser pagando taxas altíssimas por consumo excedente.
Antes que eu me decida, chega o fiscal. Encanto dos tempos que vivemos. O fiscal pode ser o homem à sua frente, ao lado. Em qualquer parte. Frequentam as filas e os locais de aglomeração. Irreconhecíveis. Camaleões, parecem-se com qualquer um. Identificados, mudam. São os fiscais.
Que medo deles. Podem verificar se estamos circulando na área correta. Olhar em nossos olhos e nos declarar doentes. Perceber uma simples tremedeira e nos enviar ao Isolamento. Fazem os camelôs desaparecerem com um gesto sutil de dedos, um acenar de mãos. Parecem mágicos, todo-poderosos.
É uma estrutura complexa. Porque existe também fiscal para o fiscal. E isso desencadeia uma guerra entre eles. Para nós, a população, os sem poder algum, sobram as rebarbas. Não me peçam para explicar a mecânica da estrutura. Não há possibilidade, somente vivendo dentro dela.
Ignácio de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum

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