De
qualquer modo, estava contente. A sensação tinha começado no fim
da manhã. Não quis almoçar, dei a ficha para o colega manco. O
homem vive esfomeado, já foi apanhado roubando fichas. Não o
denunciaram por compaixão. A mulher dele enlouqueceu durante a praga
dos grilos.
Ela
está internada, mas as visitas são proibidas. O manco ronda o
hospital, tenta entrar, pular o muro. Quase morreu eletrocutado nas
cercas. Nada pior que ter sido apanhado nos tempos da praga. Afirmar
que se ouviam grilos bastava para ser condenado. Milhares ganharam o
Isolamento.
O
manco também ficou ofendido. A fome crônica que ele sofre não pode
ser normal. A gente come pouco num calor desses. Vamos à lanchonete,
uma saladinha de brotos artificiais com salsicha sintética, e
pronto. Mal tocamos na comida. O almoço é apenas fuga do trabalho.
A
Rádio Geral, na hora do almoço, tocou apenas valsas. O tempo todo.
Discos antigos com os Meninos Cantores de Viena. Os meninos devem ter
morrido. Ou estão muito velhos, ainda a cantar valsas com vozes
trêmulas. Na minha formatura teve valsa, éramos mais de cem pares a
dançar, rodopiando.
Adelaide
dançava bem, era campeã. No clube, nas domingueiras, ela ainda
adolescente não perdia uma só música. Os rapazes adoravam dançar
com ela. Alegre, magra, leve, ágil, entusiasmada e cheia de ritmo.
Não entendo como abandonou essas coisas para se transformar num rato
de igreja.
Ela
tem certeza que Deus vai pôr a mão no mundo. Resolver a situação.
Outras vezes, fica desesperançada. Tem medo de um novo dilúvio. Já
imagino que um dilúvio seria bem-vindo. Encheria tudo de água fria.
Vivo ansioso para mergulhar numa poça que seja, boiar por uma
semana.
O
calor é pior no fim do expediente. O sol está escondido, mas o
cimento estala, as pedras racham e devolvem o mormaço. Na calçada,
espero o momento até achar uma brecha na fila da direita, direção
dos pontos de ônibus. Caminha-se muito devagar, por causa da apatia
e da quentura.
– Loteria,
moço?
– Barbatana?
– Fotografia
para documento?
– Lápis?
– Medalha?
A
fila para, vez ou outra. As pessoas se inquietam. Deve ser alguém
discutindo na Boca de Distrito. Cada hora surge um problema. Com
gente que perde a ficha de circulação. Que tem prazos vencidos. Que
não passou na prova de identidade, que foi apanhada com fichas
emprestadas.
– Bolsa
para fichas?
– Graxa?
– Meias
permeáveis?
– Bloco
de papel? Bom contrabando.
– Discos?
A
mão no bolso, comprimo minha ficha. Está gasta nas bordas, é de
alumínio vagabundo e sofre muito manuseio. Se estou nervoso, passo o
tempo a esfregá-la, como se fosse amuleto. Sem as fichas, não se
entra no Centro Esquecido da cidade. A circulação é excessivamente
controlada.
– Gilete?
– Cigarro?
– Cinzeiro
portátil?
– Cotonetes?
São raridade.
Na
rua, as bicicletas se amontoam. O antigo barulho dos motores foi
substituído pelo ruído seco das correntes girando nas rodas
dentadas. Milhares de correntes. As buzinas deram lugar a campainhas,
assobios, apitos agudos. Xinga-se muito, como nos melhores tempos dos
automóveis.
A
ausência de veículos não diminuiu a aglomeração, o
congestionamento, as confusões. Os ciclistas invadem as faixas de
ônibus, sobem nas calçadas, atropelam, muitos se equilibram no
meio-fio. Quem fica no meio da multidão sofre. Empurrões, apertos,
batidas, pontapés, insultos e bolinações.
Sensação
de corrida no jóquei, com os cavalos se atropelando, jogando-se uns
contra os outros, os montadores se batendo com chicotes. Ou as
corridas de bigas romanas. Ben-Hur. Olhando do alto dos prédios,
pode-se ver o rio contínuo de cabeças e pneus, como se fosse água
suja.
Tudo
funciona no pedal. Os mais bem colocados possuem chofer. Uma ou duas
pessoas puxam um pequeno trole, muito leve, onde o Privilegiado vai
instalado. Coisa rara de se ver no centro. Os Privilegiados não se
arriscam. O povo corre para cima deles, bate, xinga, arranca dos
veículos.
Tem
gente demais nesta cidade. Um dia, os Departamentos Circulantes
verificaram que ninguém podia se mexer. Estavam todos aglomerados,
apertados, comprimidos. Praticamente imóveis. Os empregos ficaram
vazios, a maioria não conseguiu chegar. A solução foi criar as
Áreas de Circulação.
Cada
um recebe sua ficha e está autorizado a penetrar em área
determinada. As Bocas de Distrito controlam o tráfego. Só entra na
região quem tiver a ficha correspondente. Desse modo foi possível
diminuir o fluxo. Mesmo assim, as filas nas calçadas tiveram de ser
organizadas.
Não
há outra possibilidade se quisermos chegar a algum lugar. Toma-se a
fila e, com paciência, caminha-se. Ao menos, as pessoas aprenderam a
ser pacientes. Não adianta rebelar-se, brigar. Aliás, é perigoso.
Alterações por filas e lugares podem significar apreensão da
ficha.
As
áreas determinadas são razoavelmente extensas e possuem o
necessário: restaurante, lojas, lanchonetes, farmácias, bancos,
divertimentos. A ideia dessa setorização nasceu em fins da década
de cinquenta com a fundação de Brasília. A diferença é que hoje
está altamente desenvolvida.
Estudando
as cidades mais antigas, os esquemas governantes descobriram que o
homem circulava sempre dentro de certos limites. Raramente
ultrapassava um número estabelecido de ruas e locais. “Portanto a
proibição não vai afetar o sentido de liberdade que o homem goza”,
concluíram.
Cheguei
à Boca de Distrito, coloquei minha ficha no orifício, atravessei o
corredor de metal. Que alívio. Nenhuma denúncia. Não vou passar
pela prova de identidade. Se ouvisse dois cliques, teria de mostrar a
carteira de identidade e comparar meu número com o número da ficha.
As
Bocas de Distrito ficam em plena calçada. São pequenos corredores
azuis de meio metro de extensão, eletronizados. A ficha é devolvida
à saída. Os que entram na área tomam a calçada da direita; os que
saem, a da esquerda. As fichas informam os horários permitidos de
frequência.
Tem
gente que faz o turno da noite. Suas fichas admitem entrada a partir
das dezessete e quinze. As Bocas de Distrito, de entrada e saída,
são sincronizadas. Para cada um que sai, permite-se a entrada de um.
O número de pessoas nas áreas é controlado rigorosamente. Ou,
então, seria o caos.
– Sônico
Antirratos?
Então
me bateu, o nosso está quebrado há quinze dias. Adelaide não me
lembrava, ao sair de manhã. Precisa de conserto. Será melhor
comprar um novo? A duração desses troços é tão curta. E eles,
tão importantes. Viver sem o Sônico é loucura. Ameaça. Para mim e
para os outros.
– Quanto?
– Quinhentos.
Corro
perigo sem o Sônico. Posso chegar em casa, uma hora, e vê-la tomada
pelos ratos. Tem coisas boas na tecnologia, e o Sônico é uma delas.
O aparelho emite um som de alta frequência, que é a reprodução
exata de um guincho que o rato produz após a cópula. A rata
entende.
Esse
guincho significa: “Deixe-me só”. Satisfeito com o impulso
sexual, o rato quer um tempo para recuperação. E lança esse grito
de Greta Garbo. Os cientistas conseguiram reproduzir com fidelidade o
som e evitam assim a proliferação dos animais. O som contínuo
afasta as fêmeas dos machos.
– O
dobro do que custa em loja?
– Uai,
vai à loja.
Espertos
os camelôs. Sabem que odiamos as lojas. Somos obrigados, por
decreto, a frequentá-las em nosso Dia de Consumação. Fora desse
dia vivemos o Regime da Poupança para Evitar Recessão. Não podemos
comprar nada, a não ser pagando taxas altíssimas por consumo
excedente.
Antes
que eu me decida, chega o fiscal. Encanto dos tempos que vivemos. O
fiscal pode ser o homem à sua frente, ao lado. Em qualquer parte.
Frequentam as filas e os locais de aglomeração. Irreconhecíveis.
Camaleões, parecem-se com qualquer um. Identificados, mudam. São os
fiscais.
Que
medo deles. Podem verificar se estamos circulando na área correta.
Olhar em nossos olhos e nos declarar doentes. Perceber uma simples
tremedeira e nos enviar ao Isolamento. Fazem os camelôs
desaparecerem com um gesto sutil de dedos, um acenar de mãos.
Parecem mágicos, todo-poderosos.
É
uma estrutura complexa. Porque existe também fiscal para o fiscal. E
isso desencadeia uma guerra entre eles. Para nós, a população, os
sem poder algum, sobram as rebarbas. Não me peçam para explicar a
mecânica da estrutura. Não há possibilidade, somente vivendo
dentro dela.
Ignácio
de Loyola Brandão, in Não verás país nenhum
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