terça-feira, 18 de junho de 2019

O princípio satânico do sofrimento

Se existem homens felizes nesta terra, por que eles não gritam, por que eles não descem para as ruas a fim de proclamar sua alegria? Por que tanta discrição, tanta reserva? Se eu sentisse em mim uma alegria permanente, uma irresistível propensão à serenidade, eu faria com que todos os homens conhecessem-na, eu daria vazão a toda esta euforia.
Se a felicidade existe, devemos comunicá-la. Mas talvez os indivíduos verdadeiramente felizes não tenham consciência disto. Se assim for, nós poderíamos oferecer-lhes uma parte da nossa consciência em troca de uma parte da inconsciência deles. Por que a dor tem somente lágrimas e gritos, enquanto o prazer apenas frissons? Se o homem tomasse tanto consciência do prazer quanto da dor, ele não teria que compensar suas alegrias. A repartição das dores e dos prazeres não seria incomparavelmente mais justa?
Se as dores não se deixam esquecer, é porque elas invadem desmesuradamente a consciência. Assim, aqueles que têm muito a esquecer não são outros senão os mesmos que muito sofreram. Somente as pessoas normais não têm nada a esquecer.
Enquanto as dores têm um peso e uma individualidade, os prazeres desfazem-se e fundem como formas de contornos mal definidos. Evocar um prazer e suas circunstâncias é, com efeito, extremamente difícil para nós, pois mesmo a sua mais tênue lembrança vem reforçar a das dores. Certamente, os prazeres não são esquecidos por completo - de uma vida de prazeres, guardar-se-á apenas uma leve desilusão, enquanto o homem que muito sofreu chega, na melhor das hipóteses, a uma resignação amarga.
É um vergonhoso preconceito afirmar tanto que os prazeres são egoístas e apartam o homem da vida, quanto pretender que as dores prendem-nos ao mundo. A frivolidade destes preconceitos revolta e sua origem livresca revela a nulidade de todas as bibliotecas aos olhos de uma experiência vivida até o fim.
A concepção cristã que faz do sofrimento um caminho para o amor, senão sua principal porta de acesso, é fundamentalmente errônea. Mas seria este o único campo em que o cristianismo engana-se? Fazendo do sofrimento o caminho para o amor, ignora-se toda a sua essência satânica. Os degraus do sofrimento não se elevam - eles descem; eles não conduzem ao céu, mas ao inferno.
O sofrimento separa, dissocia; força centrífuga, ele nos desliga do nó da vida, do centro de atração do mundo, lugar em que todas as coisas tendem à unidade. O princípio divino caracteriza-se por um esforço de síntese e de participação na essência do todo. De maneira contrária, um princípio satânico habita o sofrimento - produzindo desarticulação e trágica dualidade.
As diversas formas de alegria fazem-nos participar inocentemente do ritmo da vida; nós o fazemos, ainda que de maneira inconsciente, em contato com o dinamismo da existência, cada uma das nossas fibras ligada às pulsações irracionais do Todo. Isto vale não somente para a alegria espiritual, mas também para todas as formas de prazer.
O distanciamento do mundo, responsável pelo sofrimento, conduz a uma interiorização excessiva e, paradoxalmente, aumenta o grau de consciência - tanto que o mundo inteiro, com seus esplendores e trevas, torna-se exterior e transcendente. Neste ponto de separação, assim que, irremediavelmente só, tem-se o mundo diante de si, como poder-se-ia esquecer o que quer que seja? Sente-se então a necessidade de esquecer somente as experiências que fizeram sofrer. Ou, devido a um paradoxo dos mais impiedosos, desaparecem as lembranças daqueles que gostariam de se lembrar, enquanto fixam-se as reminiscências dos que gostariam de tudo esquecer.
Os homens dividem-se em duas categorias: aqueles a quem o mundo oferece ocasiões de interiorização e aqueles para quem ele permanece exterior e objetivo. Para a interiorização, a existência objetiva não é nada mais do que um pretexto . Assim, somente ela pode tomar uma significação, pois uma teleologia objetiva funda-se e justifica-se em meio a certas ilusões, que têm por defeito o fato de que um olhar penetrante pode desmascará-las facilmente. Todos os homens veem fogos, tempestades, desmoronamentos ou paisagens; mas quantos veem chamas, relâmpagos, vertigens ou harmonias? Quantos, vendo um incêndio, pensam na graça e na morte? Quantos trazem em si uma beleza longínqua que tinge sua melancolia? Para os indiferentes, a quem a natureza não oferece nada além de uma imagem insossa e glacial, a vida é, ainda que ela os preencha, uma soma de ocasiões perdidas.
Independentemente de quão profundos tenham sido meus tormentos, ou de quão grande tenha sido minha solidão, a distância que me separou do mundo somente fez com que este se tornasse mais acessível para mim. Ainda que eu não possa encontrar-lhe nem sentido objetivo, nem finalidade transcendente, a multiplicidade das formas da existência não se constituiu para mim em menos ocasiões permanentes de tristeza e de encantamento. Conheci momentos em que a beleza de uma flor justificou a meus olhos a ideia de uma finalidade universal, assim como a menor das nuvens soube clarear momentaneamente minha visão sombria das coisas. Os fanáticos da interiorização são capazes de extrair, do aspecto mais insignificante da natureza, uma revelação simbólica.
É possível que eu arraste atrás de mim tudo aquilo que nunca vi? Assusto-me com a ideia de que tantas paisagens, livros, horrores e visões sublimes possam ter se concentrado num pobre cérebro. Tenho a impressão de que eles se transpuseram em mim como realidades e de que eles pesam em meus ombros. Eis, talvez, o motivo para que eu me sinta às vezes oprimido até o ponto de querer tudo esquecer. A interiorização conduz ao colapso, pois o mundo penetra-nos e mói-nos com uma força irresistível. O que há de surpreendente, assim sendo, que as pessoas tentem recorrer a qualquer coisa - desde à vulgaridade até à arte - com o único fim de tudo esquecer?

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Eu não tenho ideias - mas obsessões. Ideias, todos podem tê-las. Mas ideias nunca provocaram o colapso do que quer que seja.
Emil Cioran, in Nos cumes do desespero

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