segunda-feira, 17 de junho de 2019

O estranho Portinari

 Retrato de Graciliano Ramos (1937), por Cândido Portinari

Você vai trazer-me os seus livros, disse-me Portinari ao almoço. Quero guardar os livros dos meus amigos. Talvez não tenha tempo de ler tudo, mas quero guardar. Você sabe como é que é. Só tenho tempo de ler isto.
Abriu volumes pesados, técnicos e álbuns preciosos. Em seguida, fomos ao “atelier” e o trabalho recomeçou, numa conversa meio monologada, que longos silêncios interrompiam. Às cinco horas julguei que a cabeça estivesse pronta: certamente não era preciso acrescentar-lhe um cabelo ou uma ruga. Portinari examinou-a, virou-a, mediu-a, murmurando frases soltas, repetindo uma que se ia tornando estribilho:
Eles não sabem como é que é.
Tive de lá voltar. Da cadeira onde me imobilizava, conseguia, entortando um pouco os olhos, avistar um pedaço do S. João, que ocupava uma parede da sala pequena. Tinham-me aparecido fotografias desse quadro um ano antes, no jornal. Estava então findo, mas a composição continuava. Fora colorido, branco e negro, novamente colorido, e tinha experimentado numerosas transformações. Corrigira-se o molequinho que sobe na palmeira; uma lata d’água mudara de tamanho; o pixaim da mulata vistosa, penteado, estirado com esmero, muito se diferençava da carapinha original. O que me preocupava nessas devastações e renascimentos eram uns anjinhos mestiços que avultam à direita, admirável tríade onde se concentram, depois de excessivos retoques, os sentimentos bons e os sentimentos puros da favela. No grupo, as minhas simpatias se fixavam na cabrochinha mais taluda, viva, iluminada por um sorriso encantador.
Ô Portinari, você ainda vai mexer com esta inocente?
Não. Acho que está acabada. Respirei, com agradecimento e alívio. Mas, na outra visita que fiz ao pintor, encontrei a minha amiga triste e desfeita: uma sombra perturbara o sorriso maravilhoso. Com certeza essa luz destoava do conjunto.
Homem estranho, Portinari, homem de enorme exigência com a sua criação, indiferente ao gosto dos outros, capaz de gastar anos enriquecendo uma tela, descobrindo hoje um pormenor razoável, suprimindo-o amanhã, severo, impiedoso. Dessa produção contínua e contínua destruição ficou o essencial, o que lhe pareceu essencial.
Não é arte fácil: teve um longo caminho duro, impôs-se a custo nestes infelizes dias de logro e charlatanismo, de poemas feitos em cinco minutos. E até nos espanta que artista assim, tão indisposto a transigências, haja alcançado em vida uma consagração. Devemos, porém, levar em conta as opiniões que não se manifestam porque seria feio discordar da crítica dos Estados Unidos. Embora considerem disforme o pé do cavador de enxada, cavalheiros prudentes o elogiam. Isto não tira nem põe. Insensível agora às lisonjas, como foi insensível aos ataques naqueles princípios ásperos, o trabalhador honesto continua a aperfeiçoar seus meios de expressão, alheio às coisas que não lhe impressionem o olho agudo. Tudo sacrifica à ocupação que o domina, o tiraniza. Só assim poderá realizar obras que não lhe desagradem. Porque o seu público é ele mesmo. Naturalmente. Encolhe os ombros a certas admirações:
Eles não sabem como é que é.
Graciliano Ramos, in Garranchos

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