O
peso-leve Miles Davis gostava de boxe, mas não havia atividade menos
indicada para um pistonista, com sua constante ameaça a mãos e
lábios. Miles tinha que se contentar em boxear contra ninguém, em
só fazer os gestos. Em inglês isto se chama shadow boxing.
Miles passou a vida boxeando com a própria sombra.
Foi
companheiro de Charlie Parker em alguns dos discos históricos do
recém-fundado be-bop. Nesta revolução ele entrou depois.
Mas a próxima ele liderou. O cool jazz começou com a
gravação histórica que ele e um noneto inventado por Gil Evans
fizeram em 1949. O som de Miles no pistom, sem vibrato, e sua
distribuição de espaços numa frase, eram a definição do cool.
Mas Miles abandonou a revolução logo depois de fazê-la. Enquanto
outros encampavam o cool e seguiam para a Califórnia e a fortuna,
Miles dava um jab na sua sombra e ficava com o hard bop, a
antítese do cool. Sem trocar de som.
Depois
veio a série de gravações (históricas) do seu quinteto com John
Coltrane. E quando todos pensavam que Miles estava no hard bop para
ficar, uma finta e um direto na expectativa de todo mundo: a gravação
de Miles Ahead com uma grande orquestra, os arranjos
luxuriantes de Gil Evans e outro Miles Davis, milhas na frente do
anterior. Depois de Miles Ahead e de outros álbuns que fez
com Gil Evans, Miles parecia ter decidido ser o duende solitário nas
grandes florestas sonoras de Evans, para sempre, mas ninguém contava
com seu jogo de pernas. Entrou num estúdio com um pequeno grupo de
músicos preferidos e apenas alguns esboços tonais para guiá-los
nas improvisações e gravou o histórico Kind of Blue. Outra
revolução.
Era
preciso sempre estar na frente dele mesmo e do que os outros
esperavam dele. Podia ter sido um tocador de baladas para jovens
amantes, um Chet Baker com glóbulos vermelhos, mas embora nunca
abandonasse seu tom melancólico sempre preferiu ser o centro quieto
de um grupo de barulhentos geniais, como Coltrane e os bateristas
bombardeadores com que gostava de trabalhar. Podia ter sucumbido à
imagem de Príncipe das Trevas e explorado o seu charme esguio de
réptil noturno, mas seu mistério era genuíno, feito com partes
iguais de misantropia e reserva. Manteve-se à frente da sua sombra.
Um
homem tem direito a fazer quantas revoluções por vida? Há quem
diga que a última revolução de Miles Davis acabou em farsa, que o
quase careca de túnica colorida fazendo fusão com a rapaziada não
era nem uma sombra, era a múmia do antigo Miles reduzido a espasmos
de som. Mas também há quem diga que o Miles da última fase era de
uma coerência fulgurante, o velho boxeador na ponta dos pés e ainda
fazendo história. Até que veio a morte e não deu para ele se
esquivar.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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