terça-feira, 11 de junho de 2019

Miles Ahead


O peso-leve Miles Davis gostava de boxe, mas não havia atividade menos indicada para um pistonista, com sua constante ameaça a mãos e lábios. Miles tinha que se contentar em boxear contra ninguém, em só fazer os gestos. Em inglês isto se chama shadow boxing. Miles passou a vida boxeando com a própria sombra.
Foi companheiro de Charlie Parker em alguns dos discos históricos do recém-fundado be-bop. Nesta revolução ele entrou depois. Mas a próxima ele liderou. O cool jazz começou com a gravação histórica que ele e um noneto inventado por Gil Evans fizeram em 1949. O som de Miles no pistom, sem vibrato, e sua distribuição de espaços numa frase, eram a definição do cool. Mas Miles abandonou a revolução logo depois de fazê-la. Enquanto outros encampavam o cool e seguiam para a Califórnia e a fortuna, Miles dava um jab na sua sombra e ficava com o hard bop, a antítese do cool. Sem trocar de som.
Depois veio a série de gravações (históricas) do seu quinteto com John Coltrane. E quando todos pensavam que Miles estava no hard bop para ficar, uma finta e um direto na expectativa de todo mundo: a gravação de Miles Ahead com uma grande orquestra, os arranjos luxuriantes de Gil Evans e outro Miles Davis, milhas na frente do anterior. Depois de Miles Ahead e de outros álbuns que fez com Gil Evans, Miles parecia ter decidido ser o duende solitário nas grandes florestas sonoras de Evans, para sempre, mas ninguém contava com seu jogo de pernas. Entrou num estúdio com um pequeno grupo de músicos preferidos e apenas alguns esboços tonais para guiá-los nas improvisações e gravou o histórico Kind of Blue. Outra revolução.
Era preciso sempre estar na frente dele mesmo e do que os outros esperavam dele. Podia ter sido um tocador de baladas para jovens amantes, um Chet Baker com glóbulos vermelhos, mas embora nunca abandonasse seu tom melancólico sempre preferiu ser o centro quieto de um grupo de barulhentos geniais, como Coltrane e os bateristas bombardeadores com que gostava de trabalhar. Podia ter sucumbido à imagem de Príncipe das Trevas e explorado o seu charme esguio de réptil noturno, mas seu mistério era genuíno, feito com partes iguais de misantropia e reserva. Manteve-se à frente da sua sombra.
Um homem tem direito a fazer quantas revoluções por vida? Há quem diga que a última revolução de Miles Davis acabou em farsa, que o quase careca de túnica colorida fazendo fusão com a rapaziada não era nem uma sombra, era a múmia do antigo Miles reduzido a espasmos de som. Mas também há quem diga que o Miles da última fase era de uma coerência fulgurante, o velho boxeador na ponta dos pés e ainda fazendo história. Até que veio a morte e não deu para ele se esquivar.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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