terça-feira, 11 de junho de 2019

A corda

A Edouard Manet 
 
As ilusões — dizia-me meu amigo — são talvez tão inumeráveis quanto as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. Quando a ilusão desaparece, isto é, quando vemos o ser ou o fato tal qual existe fora de nós, experimentamos um sentimento estranho, misto de saudade do fantasma desaparecido e agradável surpresa ante a novidade, ante o fato real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre semelhante e de tal natureza que a respeito seja impossível haver engano, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor materno quanto uma luz sem calor. Não é, pois, perfeitamente legítimo atribuir ao amor materno todas as ações e palavras de uma mãe, relativas ao seu filho? No entanto, escute esta pequena história, em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural.
Minha profissão de pintor leva-me a observar atentamente os rostos, as fisionomias que aparecem no meu caminho. Você sabe o prazer que experimentamos por essa faculdade que aos nossos olhos torna a vida mais viva e mais significativa do que para os outros homens. No bairro retirado em que moro e onde vastos espaços de mato ainda separam as construções, observei muitas vezes um menino cuja fisionomia ardente e esperta, mais do que todas as outras, logo me seduziu. Por mais de uma vez, ele posou para mim eu o transformava ora em pequeno boêmio, ora em anjo, ora em Amor mitológico. Fazia-o carregar o violão do vagabundo, a Coroa de Espinhos e os Pregos da Paixão, e a Tocha de Eros. Cheguei a sentir um prazer tão vivo com as graças desse garoto, que um dia pedi aos seus pais, gente muito pobre, que consentissem em confiá-lo a mim, prometendo-lhes que o vestiria bem, que lhe daria algum dinheiro e que o seu único trabalho seria limpar os meus pincéis e fazer minhas compras. O menino, depois de ter lavado o rosto, tornou-se encantador, e a vida que levava em minha casa parecia-lhe um paraíso, em comparação com a que teria sofrido no cortiço paterno. Devo dizer somente que o guri me surpreendia, às vezes, com crises singulares de tristeza precoce, tendo em breve manifestado um gosto imoderado pelo açúcar e pelos licores. Um dia, ao constatar que, a despeito de todas as minhas advertências, ele tornara a cometer um pequeno furto desse gênero, ameacei-o de mandá-lo de novo para a casa dos pais. E saí em seguida, tendo os meus afazeres me retido bastante tempo fora de casa.
Quais não foram o meu horror e o meu assombro quando, regressando à casa, o primeiro objeto em que pus os olhos foi o meu guri, o esperto companheiro de minha vida, enforcado no painel daquele armário! Seus pés quase tocavam o soalho; uma cadeira, que ele decerto empurrara com o pé, estava derrubada ao lado; tinha a cabeça pendida sobre um ombro; o rosto inchado e os olhos arregalados com espantosa fixidez deram-me, a princípio, a ilusão de que ainda vivia. Descrever o que se passou não é tarefa tão fácil quanto talvez você o julgue. Ele já estava hirto e eu sentia uma certa repugnância inexplicável em fazê-lo cair bruscamente ao chão. Precisei segurá-lo com um só braço, enquanto com o outro cortei a corda. Feito isso, como o pequeno monstro se tivesse servido de uma corda muito fina que lhe entrara profundamente na carne, precisei, com uma tesourinha, procurar a corda entre os dois caroços da inchação, para desembaraçar-lhe o pescoço.
Esqueci-me de dizer-lhe que, em minha aflição, gritei por socorro, mas todos os vizinhos recusaram-se a ir em meu auxílio, fiéis aos hábitos do homem civilizado que, não sei porquê, nunca se envolve em casos de enforcamento. Afinal, veio um médico que declarou que o menino estava morto havia várias horas. Quando, mais tarde, tivemos de despi-lo para o enterro, a rigidez do cadáver era tal que, desistindo de dobrar-lhe os membros, precisamos rasgar e cortar a roupa para tirá-la.
O comissário, a quem, como é natural, eu tive de expor o ocorrido, olhou-me de través e me disse, sem dúvida pelo desejo inveterado e o hábito profissional de atemorizar, arbitrariamente, os inocentes como os culpados: — Isso está mal contado! Restava uma tarefa suprema que cumprir, cuja simples ideia causava-me uma angústia terrível: era preciso avisar os pais. Meus pés recusavam levar-me. Por fim, tomei coragem. Mas, com grande espanto meu, a mãe ficou impassível, nem uma lágrima brotou-lhe no canto dos olhos. Atribuí essa coisa estranha ao horror que ela deveria ter sentido e lembrei-me da conhecida sentença: “As dores mais terríveis são as dores silenciosas”.
Quanto ao pai, limitou-se a dizer com um ar meio grosseiro e sonhador: — Afinal, talvez seja melhor assim. De qualquer forma ele acabaria mal! O corpo estava estendido no meu sofá, e eu, ajudado por uma criada, tratava dos últimos preparativos, quando a mãe entrou no meu estúdio. Disse-me que desejava ver o cadáver do filho. Eu não podia, naturalmente, impedir que ela se embriagasse em sua desgraça, recusando-lhe esse supremo e sombrio consolo. Pediu-me que lhe mostrasse o lugar onde o filho se enforcara.
Oh, não, senhora! — respondi-lhe, — isso lhe faria mal.
E, como os meus olhos se voltassem involuntariamente para o fúnebre armário, notei, com um desgosto mesclado de horror e cólera, que o prego ficara fincado na parede, com um comprido pedaço de corda dependurado. Precipitei-me para arrancar esses últimos vestígios da desgraça e, quando quis atirá-los pela janela aberta, a pobre mulher pegou-me pelo braço e me disse com uma voz irresistível: — Oh, senhor! Deixe-me isso, peço-lhe, suplico-lhe! Tive a impressão de que o desespero tornara-a tão alucinada que se tomava agora de ternura pelo que servira de instrumento à morte do filho, querendo guardá-lo como uma horrível e querida relíquia. E assim se apoderou do prego e da corda.
Enfim! Enfim, estava tudo acabado. Só me restava retornar ao trabalho, mais vivamente ainda do que de costume, para expulsar aos poucos o pequeno cadáver que vagava nas circunvoluções do meu cérebro, perseguindo-me com seus grandes olhos fixos.
No dia seguinte, porém, recebi um maço de cartas: umas, dos locatários de minha casa, outras das casas vizinhas; uma, do primeiro andar, outra do segundo; outra do terceiro; e assim por diante, umas em estilo burlesco, como que procurando disfarçar sob uma pilhéria aparente a sinceridade do pedido; outras, pesadamente cínicas e sem ortografia, mas todas tendendo ao mesmo fim: obter de mim um pedaço da corda funesta e beatífica. Entre os signatários, havia, devo dizer-lhe, mais mulheres do que homens; nem todos, porém, acredite, pertenciam à classe baixa e vulgar.
Eu guardei essas cartas. E então, subitamente, uma luz se fez no meu cérebro, e compreendi porque aquela mãe empenhara-se tanto em arrancar-me a corda e com comércio ela tencionava consolar-se.
Charles Baudelaire, in Pequenos poemas em prosa

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