sábado, 22 de junho de 2019

Apocalypse Now


Antes de mais nada, há Joseph Conrad. O seu Coração das trevas, que inspirou o roteiro de Apocalypse Now, é pouco mais do que um conto, mas tem a força de uma narrativa mítica. Uma viagem para dentro, para as fontes da demência e do mal, uma história mais antiga do que ela mesma. E também uma parábola sobre o imperialismo, talvez a primeira reflexão da Europa sobre a perversão da sua “missão civilizadora”.
É uma história de dois homens, Marlow — Willard, no filme — e Kurtz, o agente da Companhia que ele vai resgatar do coração do Congo e da sua própria loucura. Uma história de dois rios, o Tâmisa e o Congo. Marlow conta sua aventura a bordo de um barco ancorado na boca do Tâmisa, esperando a maré para subir até Londres.
Que grandeza”, escreve Conrad, “não tinha flutuado na cheia daquele rio para os mistérios de uma terra desconhecida? Os sonhos de homens, as sementes de comunidades, os germes do império.” Mas a primeira coisa que Marlow diz é: “E este também já foi um dos lugares escuros do mundo...”
Ele evoca a chegada dos primeiros romanos àqueles pântanos. “Em algum posto do interior eles sentem a selvageria fechar sobre eles, aquela misteriosa vida selvagem que se move na floresta, nos jângales, no coração dos homens... E não existe nenhuma iniciação nesses mistérios. Eles têm que viver em meio ao incompreensível, que também é o detestável. E tem um fascínio, também, que começa a agir sobre eles. O fascínio da abominação. Imagine o remorso crescente, a vontade de fugir, o nojo impotente, a entrega, o ódio.”
Mais tarde, Marlow diz: “Nenhum de nós pensaria exatamente assim, é claro. O que nos salva é a eficiência, a dedicação à eficiência. Mas eles não eram muitos, na verdade. Não eram colonizadores. Eram conquistadores, e para isso é necessário apenas força bruta, nada do que se gabar, já que a nossa força é apenas um acidente que decorre da fraqueza dos outros. Pegaram o que podiam em nome do que havia para ser pego. Era apenas roubo com violência, assassinato em grande escala, e homens se atirando a isso cegamente — como é próprio em quem enfrenta a escuridão. A conquista do mundo, que quase sempre significa tomá-lo de quem tem uma pele diferente ou um nariz um pouco mais achatado do que o nosso, não é uma coisa bonita de ver. O que a redime é a ideia, apenas. A ideia por trás dela: não uma pretensão sentimental, mas uma ideia, e uma crença desinteressada na ideia — alguma coisa a qual se pode amar, e reverenciar e oferecer sacrifícios...”
Depois deste preâmbulo, Marlow conta sua história. Ele é o homem da eficiência, dedicado à eficiência e salvo por ela. Kurtz é a ideia corrompida, irredimível, revelada em toda a sua crueldade e futilidade nos últimos limites da razão. No Congo, porque foi lá que a ideia civilizadora o depositou, mas podia ter sido na nascente do Tâmisa na época em que aquele era um dos lugares escuros do mundo, se ele fosse um conquistador mais antigo. Marlow mantém a sua lucidez. Kurtz chega à sua epifania, à lucidez que destrói, do outro lado da loucura. A selvageria no coração dos homens. A selvageria da sua missão. O horror.
A Companhia nunca é identificada no livro, mas Marlow faz exatamente a viagem que o próprio Conrad fez como empregado da Societé Anonyme Belge pour le Commerce du Haut-Congo e que o marcou para sempre. As páginas em que Marlow descreve os negros incapacitados para o trabalho escravo, abandonados nas bordas da estação da Companhia para morrer sozinhos, são terríveis como qualquer cena do Vietnã. Conrad escreveu: “Antes da minha viagem ao Congo, eu era um animal simples.” Nunca tinha visto nada tão poderoso quanto o coração das trevas. Antes de chegar ao autoconhecimento nos limites do seu império, o homem branco era um animal simples. Apocalypse Now, como O coração das trevas, descreve sua viagem para a revelação.
O filme está cheio de referências cruzadas. Marlon Brando, como Kurtz, cita T. S. Eliot. Entre os seus livros estão as poesias de Eliot e The Golden Bough e From Ritual to Romance, um estudo sobre a busca do graal sagrado e o sacrifício arquetípico de reis que Eliot recomendava para quem quisesse entender seu The Wasteland, um poema sobre a corrupção dos velhos valores europeus e da alta cultura cristã, sobre a falência das palavras antigas e a banalização dos mitos. Várias vezes, no livro, o narrador Marlow enfatiza que Kurtz é um homem de palavras levado à incoerência pela escuridão. A epígrafe do poema “Os homens vazios” de Eliot — que Kurtz cita no filme — é a frase com que no livro um nativo anuncia, com um certo deboche, a morte de Kurtz: “Mistah Kurtz, he dead.”
No livro, Marlow diz que de alguma maneira toda a Europa contribuiu para formar Kurtz. Kurtz, para Eliot, é o homem europeu esvaziado, a sua retórica corrompida e a sua cabeça cheia de palha. De certa maneira, toda a América contribuiu para formar o Kurtz do filme. Ele é um oficial exemplar, um legionário da missão civilizadora naqueles pântanos, um agente da idéia que justifica a conquista e o assassinato. Uma das provas da sua loucura, na fita gravada que Willard ouve, é a incoerência. As palavras literalmente lhe falharam no coração das trevas. Ele só pode se comunicar com o mundo pelo ritual, que é o gesto do instinto que antecede a linguagem. Nada mais eloquente do que uma cabeça decepada atirada no colo.
No filme, os americanos no Vietnã ainda são animais simples. Ao contrário dos romanos conquistando a Inglaterra ou dos belgas rapinando o Congo, eles nem saíram de casa. Transportaram a sua civilização para a floresta incompreensível. Fazem esqui nos seus rios, ouvem rock na estação do exército, recebem as coelhinhas da Playboy, compram e vendem eletrodomésticos. Willard num extremo e Kurtz no outro são os únicos lúcidos em meio a esta festa macabra. Como no livro, Marlow é salvo pela eficiência, Kurtz é devorado pela escuridão e o horror. No livro, Marlow não mata Kurtz. O coração das trevas foi escrito antes de sair The Golden Bough com sua relação de arquétipos míticos, talvez a obra literária mais influente deste século. O sacrifício de Kurtz por Willard, que só não assume o seu império porque não quer, dá ao filme a sua coerência mítica. Conrad provavelmente aprovaria.
Apesar da presença de John Millius entre os seus roteiristas Apocalypse Now só é um filme fascista na medida em que todo espetáculo que nos arrasa por todos os sentidos é fascista na sua imposição. Uma verdade cruel é que só uma civilização capaz de cometer o que cometeu no Vietnã é capaz de fazer um filme como este. Na sua força, na sua potência técnica, até na sua beleza plástica, o próprio filme como produto comercial é um comentário sobre a coerção americana e um exemplo de perversão. Redimida pelo que, afinal, redimiu os americanos no Vietnã, o autoconhecimento.
Mistah Kurtz, he dead.” Não existem mais animais simples.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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