domingo, 26 de maio de 2019

Woody Allen e as lamúrias da existência

No filme A última noite de Boris Grushenko, de Woody Allen, a morte vem buscar Boris, que, a caminho do além, passa na casa da namorada, Sonia, para se despedir. Sonia pergunta como é a morte.
Boris (depois de pensar um pouco) — Sabe a sopa no restaurante do Lipsky?
Sonia — Sei.
Boris — A morte é pior.
No humor de Woody Allen é constante esta justaposição de extremos do impensável — a morte, Deus, o universo, o nada e “por que diabo estamos aqui, irmão?” —, com uma referência ao banal. No mesmo filme, Boris e Sonia discutem a ideia de que o homem foi feito à imagem de Deus.
Boris — Você quer dizer que Deus se parece comigo? Deus usa óculos?
Sonia (hesitando) — Bom, talvez não com esses aros.
A banalização das últimas indagações da existência serve, primeiro, para amenizar os seus terrores. (“O que você tem a ver com o universo?”, pergunta a mãe do jovem Allen em Noivo neurótico, noiva nervosa, impaciente com a sua angústia precoce.) Segundo, para incorporá-las ao repertório de um cômico profissional que, no fim das contas, precisa ser engraçado antes de ser profundo. Woody Allen não é um filósofo. É um judeu da baixa classe média urbana do Leste dos Estados Unidos, como dez entre dez estrelas da comédia americana. Ele mesmo se situa na tradição dos stand-up comedians, como Henry Youngman, mestres da piada de uma linha e do monólogo, da troca de insultos com bêbados em clubes noturnos de costa a costa da América, embora reconheça que seu precursor direto seja Mort Sahl, o primeiro stand-up comedian cerebral. (Década de 1950. Sahl também foi o primeiro a fazer humor político de esquerda.)
A diferença entre Allen e os outros é que ele tem um pouco mais leitura e mais influência do contexto cultural de Nova York, podendo incluir mais significados num estilo de humor verbal que permanece, em essência, o mesmo desde o vaudeville e o burlesque. Mas, mesmo quando eleva o seu humor à metafísica, nunca falta a referência paroquial, americana, o contraste com o que existe. “Deus deveria nos dar uma prova de sua existência. Como repartir as águas do Mar Vermelho. Ou fazer o tio Sasha pagar a conta num restaurante.” Outra versão da mesma piada é: “Se Deus apenas me desse uma prova de sua existência... como depositar uma grande quantia em meu nome num banco suíço.”
O melhor humor americano é uma infindável lamúria pelos absurdos da existência urbana. Allen inclui a finitude humana, a transitoriedade do universo e as incertezas com a eternidade entre as contrariedades do cotidiano. “A minha preocupação constante é: haverá uma vida depois da morte? E, se houver, será que eles trocam uma nota de 500?” A maior piada de todas é que no fim a gente morre, mas ninguém ri disto. Se você disser, como Allen, que “o universo não passa de uma ideia passageira na mente de Deus — o que é um pensamento duplamente desagradável, se você tiver acabado de pagar a entrada da sua casa própria”, fica engraçado. Você pode ser profundo na superfície porque no fundo tudo é superficial, da sopa do Lipsky ao infinito.
Allen pertence ao pequeno mundo liberal-intelectual de Nova York. Escreve para o New Yorker, apóia todas as causas corretas, freqüenta os cinemas de arte, almoça no Russian Tea Room e abomina a Califórnia. Mas, com a lúcida irreverência de um emigrado do Brooklyn, sabe que há mais pose do que conteúdo no estilo da ilha. Sabe que Nova York, como ele, consome cultura de segunda mão: o cinema — que não é feito lá — e o alto pensamento europeu. Por isto a sua técnica preferida é a paródia, a arte de segunda mão, uma maneira de reverenciar um estilo e destruí-lo ao mesmo tempo. Todos os filmes de Woody Allen até agora foram paródias, salvo o semiconfessional Noivo neurótico, noiva nervosa.
Em Cuca fundida, o primeiro livro de Woody Allen traduzido para o português (obrigado, L&PM), todos os textos são paródias. O cara, sabiamente escolhido como texto de abertura da edição em português — no original, se não me engano, era o último texto —, apresenta, combinadas, as técnicas favoritas de Allen, a paródia e a banalização do grande tema. No estilo de uma novela policial da década de 40, Allen conta a história do detetive particular contratado por uma loura estonteante para descobrir o paradeiro de Deus. No fim descobre que Deus está morto. A loura, uma catedrática de física disfarçada, o matou. Textos como Os róis de Metterling, A história de uma grande invenção, Como alfabetizar um adulto, Os anos 20 eram uma festa e Conversações com Helmholz são paródias de erudição.
Em A morte bate à porta, Allen transporta a velha imagem medieval do homem jogando a sua alma no xadrez com a morte, que Bergman usou no filme O sétimo selo, para um subúrbio da classe média de Nova York. Nat Ackerman joga biriba com a morte — e ganha. Contos hassídicos, Correspondência entre Gossage e Vardebian, Reflexões de um bem-alimentado, Conde Drácula e Viva Vargas são paródias de formas literárias. Allen faz um humor intelectualmente pretensioso, cujo alvo principal é a pretensão intelectual. Não pode errar.
A ideia de que Woody Allen não pode ser entendido como deve fora do contexto intelectual judeu nova-iorquino me parece tão falsa quanto a ideia, que felizmente até hoje ninguém defendeu, de que Kafka não significa nada fora do contexto intelectual judeu de Praga na sua época. Não que Allen seja comparável a Kafka. A tradição do stand-up comedian é mais forte nele do que qualquer sombria herança literária da Europa Central. Mas certamente ele pode ser lido com prazer onde quer que coisas como a pretensão intelectual e o absurdo — sem falar na morte, em Deus, no universo, no nada e “será que na eternidade se consegue mulher?” — ocupem a mente das pessoas.
A tradução de Ruy Castro não surpreende. Está perfeita.
Luís Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses

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