No
filme A última noite de Boris Grushenko, de Woody Allen, a
morte vem buscar Boris, que, a caminho do além, passa na casa da
namorada, Sonia, para se despedir. Sonia pergunta como é a morte.
Boris
(depois de pensar um pouco) — Sabe a sopa no restaurante do Lipsky?
Sonia
— Sei.
Boris
— A morte é pior.
No
humor de Woody Allen é constante esta justaposição de extremos do
impensável — a morte, Deus, o universo, o nada e “por que diabo
estamos aqui, irmão?” —, com uma referência ao banal. No mesmo
filme, Boris e Sonia discutem a ideia de que o homem foi feito à
imagem de Deus.
Boris
— Você quer dizer que Deus se parece comigo? Deus usa óculos?
Sonia
(hesitando) — Bom, talvez não com esses aros.
A
banalização das últimas indagações da existência serve,
primeiro, para amenizar os seus terrores. (“O que você tem a ver
com o universo?”, pergunta a mãe do jovem Allen em Noivo
neurótico, noiva nervosa, impaciente com a sua angústia
precoce.) Segundo, para incorporá-las ao repertório de um cômico
profissional que, no fim das contas, precisa ser engraçado antes de
ser profundo. Woody Allen não é um filósofo. É um judeu da baixa
classe média urbana do Leste dos Estados Unidos, como dez entre dez
estrelas da comédia americana. Ele mesmo se situa na tradição dos
stand-up comedians, como Henry Youngman, mestres da piada de
uma linha e do monólogo, da troca de insultos com bêbados em clubes
noturnos de costa a costa da América, embora reconheça que seu
precursor direto seja Mort Sahl, o primeiro stand-up comedian
cerebral. (Década de 1950. Sahl também foi o primeiro a fazer humor
político de esquerda.)
A
diferença entre Allen e os outros é que ele tem um pouco mais
leitura e mais influência do contexto cultural de Nova York, podendo
incluir mais significados num estilo de humor verbal que permanece,
em essência, o mesmo desde o vaudeville e o burlesque.
Mas, mesmo quando eleva o seu humor à metafísica, nunca falta a
referência paroquial, americana, o contraste com o que existe. “Deus
deveria nos dar uma prova de sua existência. Como repartir as águas
do Mar Vermelho. Ou fazer o tio Sasha pagar a conta num restaurante.”
Outra versão da mesma piada é: “Se Deus apenas me desse uma prova
de sua existência... como depositar uma grande quantia em meu nome
num banco suíço.”
O
melhor humor americano é uma infindável lamúria pelos absurdos da
existência urbana. Allen inclui a finitude humana, a transitoriedade
do universo e as incertezas com a eternidade entre as contrariedades
do cotidiano. “A minha preocupação constante é: haverá uma vida
depois da morte? E, se houver, será que eles trocam uma nota de
500?” A maior piada de todas é que no fim a gente morre, mas
ninguém ri disto. Se você disser, como Allen, que “o universo não
passa de uma ideia passageira na mente de Deus — o que é um
pensamento duplamente desagradável, se você tiver acabado de pagar
a entrada da sua casa própria”, fica engraçado. Você pode ser
profundo na superfície porque no fundo tudo é superficial, da sopa
do Lipsky ao infinito.
Allen
pertence ao pequeno mundo liberal-intelectual de Nova York. Escreve
para o New Yorker, apóia todas as causas corretas, freqüenta
os cinemas de arte, almoça no Russian Tea Room e abomina a
Califórnia. Mas, com a lúcida irreverência de um emigrado do
Brooklyn, sabe que há mais pose do que conteúdo no estilo da ilha.
Sabe que Nova York, como ele, consome cultura de segunda mão: o
cinema — que não é feito lá — e o alto pensamento europeu. Por
isto a sua técnica preferida é a paródia, a arte de segunda mão,
uma maneira de reverenciar um estilo e destruí-lo ao mesmo tempo.
Todos os filmes de Woody Allen até agora foram paródias, salvo o
semiconfessional Noivo neurótico, noiva nervosa.
Em
Cuca fundida, o primeiro livro de Woody Allen traduzido para o
português (obrigado, L&PM), todos os textos são paródias. O
cara, sabiamente escolhido como texto de abertura da edição em
português — no original, se não me engano, era o último texto —,
apresenta, combinadas, as técnicas favoritas de Allen, a paródia e
a banalização do grande tema. No estilo de uma novela policial da
década de 40, Allen conta a história do detetive particular
contratado por uma loura estonteante para descobrir o paradeiro de
Deus. No fim descobre que Deus está morto. A loura, uma catedrática
de física disfarçada, o matou. Textos como Os róis de
Metterling, A história de uma grande invenção, Como alfabetizar um
adulto, Os anos 20 eram uma festa e Conversações com
Helmholz são paródias de erudição.
Em
A morte bate à porta, Allen transporta a velha imagem
medieval do homem jogando a sua alma no xadrez com a morte, que
Bergman usou no filme O sétimo selo, para um subúrbio da
classe média de Nova York. Nat Ackerman joga biriba com a morte —
e ganha. Contos hassídicos, Correspondência entre Gossage e
Vardebian, Reflexões de um bem-alimentado, Conde Drácula e Viva
Vargas são paródias de formas literárias. Allen faz um humor
intelectualmente pretensioso, cujo alvo principal é a pretensão
intelectual. Não pode errar.
A
ideia de que Woody Allen não pode ser entendido como deve fora do
contexto intelectual judeu nova-iorquino me parece tão falsa quanto
a ideia, que felizmente até hoje ninguém defendeu, de que Kafka não
significa nada fora do contexto intelectual judeu de Praga na sua
época. Não que Allen seja comparável a Kafka. A tradição do
stand-up comedian é mais forte nele do que qualquer sombria
herança literária da Europa Central. Mas certamente ele pode ser
lido com prazer onde quer que coisas como a pretensão intelectual e
o absurdo — sem falar na morte, em Deus, no universo, no nada e
“será que na eternidade se consegue mulher?” — ocupem a mente
das pessoas.
A
tradução de Ruy Castro não surpreende. Está perfeita.
Luís
Fernando Veríssimo, in Banquete com os deuses
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