domingo, 26 de maio de 2019

Uma visita inconveniente

O sociólogo estrangeiro desembarcou, dirigiu-se ao hotel, aboletou-se e no dia seguinte percorreu a cidade, exibindo a roupa de sábio, surrada e com joelheiras, o guarda-chuva de cabo torto, o chapéu de palha, sujo, roído nas abas, um grande pacote amarelo debaixo do braço.
Conhecidas várias ruas, encaminhou-se ao palácio do governo, entregou a um contínuo o cartão de visita e sentou-se. Pouco depois mandaram-no entrar, pois tinha vindo pelo telégrafo recomendação forte. Ergueu-se, afastou o reposteiro verde com símbolos bordados a ouro e achou-se na presença do poder executivo, a quem endereçou um pequeno discurso organizado na antecâmara, mentalmente.
Em seguida, sobre a mesa larga onde o expediente se acumulava, desatou os cordões do embrulho e ofereceu a S. Excia. diversas brochuras grossas, que encerravam, com largo saber, as transações humanas dos tempos pré-históricos e as do futuro.
O governador incluiu num rápido balanço os títulos sisudos, as dedicatórias amáveis, os milheiros de páginas cobertas de letra miúda, floresta raramente quebrada por espaços brancos. Juntou a isso as duas linhas que negrejavam no cartão, sob o nome do visitante, os termos da recomendação telegráfica, ministerial — e disse as palavras aplicáveis à situação.
Conversou durante os minutos precisos e regulamentares, pensando nos encrencados artigos dum vago decreto e numa criatura feminina, também vaga e encrencada. Ditas as frases necessárias, calcou o botão da campainha e mandou chamar um funcionário de vulto, conveniente às exigências do sociólogo que ali descansava na cadeira de espaldar alto, encimado por uma águia e outros objetos oficiais. Vindo o burocrata, fez a apresentação:
Professor Fulano, da universidade de... (Onde era a universidade, santo Deus?) A universidade de tal parte. Deseja...
Houve uma pausa, exame de papéis — e o sociólogo explicou minuciosamente o que desejava.
O governador não entendeu e transportou-se aos parágrafos difíceis do decreto e a certas palavras da mulher vaga. O funcionário balançou a cabeça:
Perfeitamente.
Despedidas protocolares, sorrisos, agradecimentos. O contínuo, percebendo que o sujeito era importante, franziu, curvando-se, os símbolos dourados do reposteiro verde.
Às suas ordens, professor, disse o funcionário, deixando o palácio.
E entrou num automóvel, dispôs-se, chateado, a mostrar ao homem do guarda-chuva de cabo torto as curiosidades indispensáveis à fabricação duma obra séria e acadêmica.
Percorreram secretarias, diretorias, o serviço de algodão. Viram e comentaram a estrada de rodagem, o hóspede exigindo pormenores, os construtores alargando-se em considerações alheias às perguntas. Estudaram, no aprendizado agrícola, o banheiro carrapaticida, as pocilgas, o estábulo e o galinheiro, coleções de animais desenvolvidos cientificamente e improdutivos. Foram ao tribunal e aos jornais, leram sentenças e artigos de fundo. As sentenças eram o que no lugar havia de melhor em sintaxe; os artigos, mal escritos, revelavam energia e lirismo.
Visitaram o mercado, o Instituto Histórico, os clubes de football, os cafés, os cinemas, casas de família e casas onde não existiam famílias, em pontas de rua.
O sociólogo estrangeiro, de olhos abertos, ouvidos abertos, a carteira aberta, o lápis na mão, possuía, decorrida uma semana, material suficiente para um livro de quinhentas páginas, corpo 8. Figurariam nele, com auxílio de algumas crônicas pesadas, as origens, o desenvolvimento, o fim provável duma sociedade que, partindo daqui, andando ali, chegaria necessariamente acolá.
Nesse ponto, como era preciso estirar o volume, exploraram-se as escolas. Tudo correu bem nas elementares. As professoras disseram o que sabiam e os meninos indicaram no mapa o sítio onde frei Henrique de Coimbra rezou a missa de estreia. Mas num estabelecimento secundário houve desastre.
Esse tipo, cochichou o funcionário a um lente sabido, quer uns esclarecimentos sobre os índios. Vou levá-lo à sua classe. Pensei em você para explicar direito esse negócio. Conte umas lorotas, que o homem é de universidade.
Muito bem, respondeu a douta personagem agradecida, feliz por sair da sombra e manifestar-se diante de quem pudesse compreendê-la.
Meia hora depois, numa preleção muito verbosa, dizia aos alunos (dirigia-se na verdade ao estrangeiro, que o escutava assombrado ali perto, o guarda-chuva entre os joelhos) coisas admiráveis a respeito de inscrições achadas no sertão. Garantiu que elas tinham sido feitas pelos egípcios e pelos fenícios, desembarcados no Brasil tantos séculos antes de Jesus (estabeleceu a data), agentes de colônias prósperas, ligadas por um comércio regular às metrópoles. Tentou decifrar alguns caracteres, percebeu neles os nomes de Osíris e dos engenheiros que, há quatro mil anos, executaram obras notáveis na cachoeira de Paulo Afonso. Sim senhor. Os devotos de Osíris e de Ísis misturados aos selvagens nacionais, que ainda não eram tupis.
Não senhor.
O estrangeiro embasbacava, arregalava os olhos. E o funcionário suava, agitava-se desesperadamente na cadeira, parecia mordido de pulgas. Trincava os beiços e fazia gestos inúteis. Segurava-se à ideia de que o sujeito importante, conhecedor de fatos relativos à pré-história e ao fim do mundo, não entendesse a linguagem do professor cambembe, provinciana e corrupta.
Ora muito bem. Dessas relações entre o elemento indígena, os egípcios e os fenícios nasceram os tupis. Os estudantes maus bocejaram.
Os estudantes bons sorriram. Os medíocres pegaram os cadernos e tomaram notas.
Felizmente lá fora ninguém entende um português assim estragado, consolou-se o funcionário. Estamos em segurança.
O sociólogo estrangeiro desiludiu-o, fulminou-o com uma pergunta brutal:
Os senhores não têm programa? Um homem pode aqui ensinar isso na escola?
Graciliano Ramos, in Garranchos (Cultura Política, ano 2, nº 22, Rio de Janeiro, dezembro de 1942)

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