O
sociólogo estrangeiro desembarcou, dirigiu-se ao hotel, aboletou-se
e no dia seguinte percorreu a cidade, exibindo a roupa de sábio,
surrada e com joelheiras, o guarda-chuva de cabo torto, o chapéu de
palha, sujo, roído nas abas, um grande pacote amarelo debaixo do
braço.
Conhecidas
várias ruas, encaminhou-se ao palácio do governo, entregou a um
contínuo o cartão de visita e sentou-se. Pouco depois mandaram-no
entrar, pois tinha vindo pelo telégrafo recomendação forte.
Ergueu-se, afastou o reposteiro verde com símbolos bordados a ouro e
achou-se na presença do poder executivo, a quem endereçou um
pequeno discurso organizado na antecâmara, mentalmente.
Em
seguida, sobre a mesa larga onde o expediente se acumulava, desatou
os cordões do embrulho e ofereceu a S. Excia. diversas brochuras
grossas, que encerravam, com largo saber, as transações humanas dos
tempos pré-históricos e as do futuro.
O
governador incluiu num rápido balanço os títulos sisudos, as
dedicatórias amáveis, os milheiros de páginas cobertas de letra
miúda, floresta raramente quebrada por espaços brancos. Juntou a
isso as duas linhas que negrejavam no cartão, sob o nome do
visitante, os termos da recomendação telegráfica, ministerial —
e disse as palavras aplicáveis à situação.
Conversou
durante os minutos precisos e regulamentares, pensando nos
encrencados artigos dum vago decreto e numa criatura feminina, também
vaga e encrencada. Ditas as frases necessárias, calcou o botão da
campainha e mandou chamar um funcionário de vulto, conveniente às
exigências do sociólogo que ali descansava na cadeira de espaldar
alto, encimado por uma águia e outros objetos oficiais. Vindo o
burocrata, fez a apresentação:
— Professor
Fulano, da universidade de... (Onde era a universidade, santo Deus?)
A universidade de tal parte. Deseja...
Houve
uma pausa, exame de papéis — e o sociólogo explicou
minuciosamente o que desejava.
O
governador não entendeu e transportou-se aos parágrafos difíceis
do decreto e a certas palavras da mulher vaga. O funcionário
balançou a cabeça:
— Perfeitamente.
Despedidas
protocolares, sorrisos, agradecimentos. O contínuo, percebendo que o
sujeito era importante, franziu, curvando-se, os símbolos dourados
do reposteiro verde.
— Às
suas ordens, professor, disse o funcionário, deixando o palácio.
E
entrou num automóvel, dispôs-se, chateado, a mostrar ao homem do
guarda-chuva de cabo torto as curiosidades indispensáveis à
fabricação duma obra séria e acadêmica.
Percorreram
secretarias, diretorias, o serviço de algodão. Viram e comentaram a
estrada de rodagem, o hóspede exigindo pormenores, os construtores
alargando-se em considerações alheias às perguntas. Estudaram, no
aprendizado agrícola, o banheiro carrapaticida, as pocilgas, o
estábulo e o galinheiro, coleções de animais desenvolvidos
cientificamente e improdutivos. Foram ao tribunal e aos jornais,
leram sentenças e artigos de fundo. As sentenças eram o que no
lugar havia de melhor em sintaxe; os artigos, mal escritos, revelavam
energia e lirismo.
Visitaram
o mercado, o Instituto Histórico, os clubes de football, os
cafés, os cinemas, casas de família e casas onde não existiam
famílias, em pontas de rua.
O
sociólogo estrangeiro, de olhos abertos, ouvidos abertos, a carteira
aberta, o lápis na mão, possuía, decorrida uma semana, material
suficiente para um livro de quinhentas páginas, corpo 8. Figurariam
nele, com auxílio de algumas crônicas pesadas, as origens, o
desenvolvimento, o fim provável duma sociedade que, partindo daqui,
andando ali, chegaria necessariamente acolá.
Nesse
ponto, como era preciso estirar o volume, exploraram-se as escolas.
Tudo correu bem nas elementares. As professoras disseram o que sabiam
e os meninos indicaram no mapa o sítio onde frei Henrique de Coimbra
rezou a missa de estreia. Mas num estabelecimento secundário houve
desastre.
— Esse
tipo, cochichou o funcionário a um lente sabido, quer uns
esclarecimentos sobre os índios. Vou levá-lo à sua classe. Pensei
em você para explicar direito esse negócio. Conte umas lorotas, que
o homem é de universidade.
— Muito
bem, respondeu a douta personagem agradecida, feliz por sair da
sombra e manifestar-se diante de quem pudesse compreendê-la.
Meia
hora depois, numa preleção muito verbosa, dizia aos alunos
(dirigia-se na verdade ao estrangeiro, que o escutava assombrado ali
perto, o guarda-chuva entre os joelhos) coisas admiráveis a respeito
de inscrições achadas no sertão. Garantiu que elas tinham sido
feitas pelos egípcios e pelos fenícios, desembarcados no Brasil
tantos séculos antes de Jesus (estabeleceu a data), agentes de
colônias prósperas, ligadas por um comércio regular às
metrópoles. Tentou decifrar alguns caracteres, percebeu neles os
nomes de Osíris e dos engenheiros que, há quatro mil anos,
executaram obras notáveis na cachoeira de Paulo Afonso. Sim senhor.
Os devotos de Osíris e de Ísis misturados aos selvagens nacionais,
que ainda não eram tupis.
— Não
senhor.
O
estrangeiro embasbacava, arregalava os olhos. E o funcionário suava,
agitava-se desesperadamente na cadeira, parecia mordido de pulgas.
Trincava os beiços e fazia gestos inúteis. Segurava-se à ideia de
que o sujeito importante, conhecedor de fatos relativos à
pré-história e ao fim do mundo, não entendesse a linguagem do
professor cambembe, provinciana e corrupta.
— Ora
muito bem. Dessas relações entre o elemento indígena, os egípcios
e os fenícios nasceram os tupis. Os estudantes maus bocejaram.
Os
estudantes bons sorriram. Os medíocres pegaram os cadernos e tomaram
notas.
— Felizmente
lá fora ninguém entende um português assim estragado, consolou-se
o funcionário. Estamos em segurança.
O
sociólogo estrangeiro desiludiu-o, fulminou-o com uma pergunta
brutal:
— Os
senhores não têm programa? Um homem pode aqui ensinar isso na
escola?
Graciliano
Ramos, in Garranchos (Cultura Política, ano 2, nº 22,
Rio de Janeiro, dezembro de 1942)
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