O
tema da mulher esperando o homem há muito, muito tempo me fascina;
sei que é velho, já serviu para sonetos, contos, páginas de
romance, talvez quadro de pintura, talvez música. E eu que não sei
fazer nada disso sou, entretanto, perseguido por histórias de sua
mulher esperando homem, das mais banais às mais terríveis.
Agora mesmo, quando passou o aniversário
da revolução húngara, eu me lembre que entre todos os relatos,
alguns dolorosos, horríveis, de gente que fugiu da Hungria, havia o
de uma mulher que contou com simplicidade a sua história; e foi o
que mais me impressionou quando o li, de madrugada, no meu quarto de
hotel em Nova York. O marido saíra para a revolução e lhe disse
que ela não saísse de casa de maneira alguma, esperasse sua volta.
Chegou a noite e ele não veio; no outro dia entraram na rua tanques
russos atirando, e veio outra vez a noite, e veio outro dia, e veio
outra noite, e ela esperando; cochilava um pouco sentada, acordava
assustada julgando ouvir os passos ou a voz dele, até que chegou por
um parente a noticia de que ele morrera.
Ela então saiu de casa e – “como eu
não tinha mais nada que esperar”, segundo disse – fugiu para a
fronteira da Áustria.
Não sei por quê, achei que essa mulher
sentiu um alívio ao saber que não devia esperar mais; acontecera,
naturalmente, o pior. Mas a angústia de esperar cessara.
O homem ausente era como um carcereiro
que a prendia no lar transformado em câmara de torturas. Ela agora
estava desgraçada, mas livre.
Mas não é preciso haver guerra nem
nenhum perigo; nesta madrugada em que escrevo, em Ipanema, quantas
mulheres não estarão esperando os maridos? Aquela pequena luz acesa
em um edifício distante é talvez o apartamento da mulher insone que
já telefonou meio envergonhada para várias casas amigas perguntando
pelo marido, que já olhou o relógio vinte vezes e tomou comprimido
para dormir, ligou a Rádio Relógio, tentou ler uma revista velha,
fumou quase um maço de cigarros.
Não importa que seja a esposa vulgar de
um homem vulgar; e que no fim a história do atraso dele seja também
completamente vulgar. Neste momento ela é a mulher esperando o
homem; e todas as mulheres esperando seus homens se parecem no mundo,
e se ligam por invisível túnel de solidariedade que atravessa as
madrugadas intermináveis.
Todas: a mulher do pescador, a mulher do
aviador, e a do revisor de jornal, a do milionário e a do ministro
protestante…
Devia haver um santo especial para
proteger a mulher esperando o homem, devia haver uma oração forte
para ela rezar; ela está desamparada no centro de um mundo vazio.
Ela começa a odiar os móveis e as
paredes; a torneira da pia lhe parece antipática; a geladeira, que
aliás precisa ser pintada, é estúpida, porque ronca de repente e
depois o silêncio é mais quieto. A cama é insuportável.
Devia haver um número de telefone
especial para a mulher que está esperando o homem chamar, reclamar
providências, ouvir promessas, insistir, tocar outra vez, xingar,
bater com o fone. Devia haver funcionários especiais, capazes de
abastecer essa mulher de esperança de quinze em quinze minutos,
jurar que todas as providências já foram tomadas, “estamos
seguros que dentro de poucos minutos teremos alguma coisa a dizer à
senhora…”
E diria que pelo menos no necrotério ele
não está, nem no pronto-socorro, nem em delegacia nenhuma; mas não
diria isso de uma só vez, e sim através de informes espaçados, que
fossem formando etapas de ansiedades, que quadriculassem lentamente a
insônia.
A mulher que está esperando o homem está
sujeita a muitos perigos entre o ódio e o tédio, o medo, o carinho
e a vontade de vingança.
Se um aparelho registrasse tudo o que ela
sente e pensa durante a noite insone, e se o homem, no dia seguinte,
pudesse tomar conhecimento de tudo, como quem ouve uma gravação
numa fita, é possível que ele ficasse pálido, muito pálido.
Porque a mulher que está esperando o
homem recebe sempre a visita do Diabo, e conversa com ele. Pode não
concordar com o que ele diz, mas conversa com ele.
Rubem Braga, in 200 crônicas
escolhidas
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