Vivíamos
em Moçambique e em Angola a aplicação esforçada do modelo
estético e literário do realismo socialista. Nós mesmos fomos
autores militantes, a nossa alma tomou partido e tudo isso nos
parecia historicamente necessário. Mas nós entendíamos que havia
uma outra lógica que nos escapava e que a literatura tinha razões
que escapavam à razão política.
A
leitura de Rosa sugeria que era preciso sair para fora da razão para
se poder olhar por dentro a alma dos brasileiros. Como se para tocar
a realidade fosse necessário uma certa alucinação, uma certa
loucura capaz de resgatar o invisível. A escrita não é um veículo
para se chegar a uma essência, a uma verdade. A escrita é a viagem
interminável. A escrita é a descoberta de outras dimensões, o
desvendar de mistérios que estão para além das aparências. É
Rosa quem escreve: “Quando nada acontece, há um milagre que não
estamos vendo”.
Há
aqui um posicionamento político nunca enunciado mas inscrito no
tratamento da linguagem. É na recriação da linguagem que ele
sugere uma utopia, uma ideia de futuro que está para além daquilo
que ele denuncia como uma tentativa de “miséria melhorada”. Esta
linguagem mediada entre classes cultas e os sertanejos quase não
existia no Brasil. Através de uma linguagem reinventada com a
participação dos componentes culturais africanos também nós em
Angola e Moçambique procurávamos uma arte em que os excluídos
pudessem participar da invenção da sua História.
Mia
Couto, in Encontros e encantos — Guimarães Rosa
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