terça-feira, 21 de maio de 2019

Quase de verdade (segundo trecho)


E a história?
Bem, ela se inicia no enorme quintal de uma senhora chamada Oniria.
Oniria é meio mágica também, mas só quando entra na cozinha. Imaginem que, com ovo, farinha de trigo, manteiga e chocolate, ela consegue fazer explodir um bolo que é gostoso até para rei e rainha. Pergunto a você: quem é a pessoa mágica na cozinha de sua casa?



Nesse quintal que visitei e cheirei, o que havia? Havia uma árvore enorme chamada figueira — e galos e galinhas.
Tudo corria em paz naquela zona: a chuva alimentava a bela figueira, o Sol lhe dava vida.
Oniria fazia bolos, sem contar que. além do milho que os galos e galinhas comiam, o terreno era cheio de minhocas, sobretudo depois que chovia, oh terra boa.
Oniria gostava muito da grande figueira e das aves. Tinha até um livro que ensinava como fazer para as galinhas botarem ovo forte: era dando água, em vez de fria e pouca, morninha e muita. Quanto à figueira, Oniria punha de vez em quando nas suas raízes terra adubada de onde ela tirava comida com vitamina.



Entre os galos e as galinhas existiam duas aves muito importantes porque eram inteligentes, bondosas e protegiam os seus amigos. Eram como o rei e rainha do galinheiro. O galo se chamava Ovidio. O ‘O’ vinha do ovo, o ‘vidio’ era por conta dele. A galinha se chamava Odissea. O ‘O’ era por causa do ovo e o ‘dissea’ vinha por conta dela.
Aliás o mesmo acontecia com Oniria: o ‘O’ do ovo e o ‘niria’ porque assim queria ela. Casada com o seu Onofre. Bem, você já sabe que o ‘O’ de Onofre era em homenagem ao ovo — você adivinhou certo: o ‘nofre’ era malandragem dele. E patati e patatá. Au-au-au!
Assim corria a vida. Mansa, mansa.
Os homens homenzavam, as mulheres mulherizavam, os meninos e meninas meninizavam, os ventos ventavam, a chuva chuvava, as galinhas galinhavam, os galos galavam, a figueira figueirava, os ovos ovavam. E assim por diante.
A essa altura, você deve estar reclamando e perguntando: cadê a história?
Paciência, a história vai historijar. E é para agora mesmo. Começa assim: Era um dia de domingo, sem nenhum programa, sem nenhum divertimento, era um dia de nada. Quer dizer, nada acontecia. Tudo igual. O Sol cantando. De pura tagarelice as galinhas cacarejavam. Mas a calmaria não durou muito. E a culpa foi da figueira que não se sabe por que nunca dera figos.
(Pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim, pirilim-pim-pim)
Clarice Lispector, in Quase de verdade

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