Ao
buscar a felicidade e a imortalidade, os humanos estão na verdade
tentando promover-se à condição de deuses. Não só porque esses
atributos são divinos, mas igualmente porque, para superar a velhice
e o sofrimento, terão de adquirir primeiro um controle de caráter
divino sobre o próprio substrato biológico. Se algum dia detivermos
o poder de excluir a morte e a dor de nosso sistema, esse poder
provavelmente será suficiente para estruturar nosso sistema do jeito
que quisermos e para manipular nossos órgãos, emoções e
inteligência de várias maneiras. Seria possível adquirir a força
de Hércules, a sensualidade de Afrodite, a sabedoria de Atena ou a
loucura de Dioniso, se esse fosse o seu desejo. Até agora, aumentar
o poder do homem consistiu principalmente em aprimorar suas
ferramentas externas. No futuro, pode tratar-se mais de aprimorar o
corpo e a mente humanos ou de nos fundirmos diretamente com nossas
ferramentas.
A
elevação dos humanos à condição de deuses pode seguir qualquer
um dentre estes três caminhos: engenharia biológica, engenharia
cibernética e engenharia de seres não orgânicos.
A
engenharia biológica começa com a noção de que estamos longe de
constatar todo o potencial dos corpos orgânicos. Durante 4 bilhões
de anos, a seleção natural vem fazendo ajustes e correções nesses
corpos, de modo que passamos de amebas a répteis, a mamíferos e a
Sapiens. Contudo, não há motivo para pensar que Sapiens
seja o último estágio. Mudanças relativamente pequenas em genes,
hormônios e neurônios foram suficientes para transformar o Homo
erectus — que não conseguiu produzir algo mais impressionante
do que facas feitas de lascas de pedra — em Homo sapiens,
que produzem espaçonaves e computadores. O que resultaria de mais
algumas pequenas mudanças em nosso DNA, no sistema hormonal ou na
estrutura do cérebro? A bioengenharia não vai ficar esperando
pacientemente a seleção natural realizar a sua mágica.
Bioengenheiros vão pegar o velho corpo do Sapiens e
reescrever intencionalmente seu código genético, reconectar seus
circuitos cerebrais, alterar seu equilíbrio bioquímico e até mesmo
provocar o crescimento de novos membros. Disso resultarão novas
entidades divinas que poderão ser tão diferentes de nós Sapiens
quanto somos diferentes do Homo erectus.
A
engenharia cibernética dará um passo a mais, ao fundir o corpo
orgânico com dispositivos não orgânicos, como mãos biônicas,
olhos artificiais ou milhões de nanorrobôs que navegarão na
corrente sanguínea com o propósito de diagnosticar doenças e
corrigir danos. Um ciborgue poderia dispor de capacidades muito além
daquelas comuns a qualquer corpo orgânico. Por exemplo, para
funcionar, todas as partes de um corpo orgânico têm de estar em
contato direto umas com as outras. Se o cérebro de um elefante está
na Índia, seus olhos e orelhas na China, e suas patas na Austrália,
provavelmente se trata de um animal morto e, mesmo que, em algum
misterioso sentido, esteja vivo, não poderá ver, ouvir ou andar. Um
ciborgue, em contrapartida, poderia existir em vários lugares ao
mesmo tempo. Uma médica ciborgue poderia realizar cirurgias de
emergência em Tóquio, em Chicago, numa estação espacial em Marte,
sem jamais sair de seu consultório em Estocolmo. Ela precisaria
apenas de uma conexão rápida de internet e alguns pares de olhos e
mãos biônicos. Pensando melhor, por que pares? Por que não
quartetos? De fato, mesmo estes são na realidade supérfluos. Por
que uma médica ciborgue deveria ter um bisturi na mão, já que
poderia conectar sua mente diretamente ao instrumento?
Isso
pode soar como ficção científica, mas já é realidade.
Recentemente, macacos aprenderam a controlar mãos e pés biônicos
desconectados do corpo por meio de eletrodos implantados no cérebro.
Pacientes com paralisia são capazes de movimentar membros biônicos
ou de operar computadores apenas com a força do pensamento. Se você
quiser, poderá controlar remotamente dispositivos elétricos em sua
casa usando um capacete elétrico capaz de “ler a mente”. O
capacete não requer implantes cerebrais, uma vez que seu
funcionamento depende da leitura dos sinais elétricos que passam no
couro cabeludo. Se quiser acender a luz na cozinha, apenas coloque o
capacete, imagine algum sinal previamente programado (movimentar a
mão direita, por exemplo), e o interruptor é acionado. Pode-se
comprar um capacete desses on-line por meros quatrocentos dólares.
No
início de 2015, centenas de trabalhadores no centro de alta
tecnologia Epicenter, em Estocolmo, na Suécia, tiveram microchips
implantados nas mãos. Com o tamanho aproximado de um grão de arroz,
esses chips armazenam informações de segurança
personalizadas que permitem aos trabalhadores abrir portas e operar
fotocopiadoras com um movimento das mãos. Espera-se que em breve
seja possível fazer pagamentos da mesma maneira. Um dos cérebros
por trás dessa iniciativa, Hannes Sjoblad, explicou: “Nós
interagimos com tecnologia o tempo todo. Hoje em dia há alguma
confusão com códigos PIN e senhas. Não seria mais fácil então
usar as mãos?”.
Mas
mesmo a engenharia cibernética é relativamente conservadora, ao
assumir que os cérebros orgânicos continuarão a ser os centros de
comando e controle da vida. Uma abordagem mais ousada dispensa
totalmente as partes orgânicas, com a expectativa de dominar a
engenharia de seres completamente não orgânicos. Redes neurais
serão substituídas por softwares inteligentes, que poderiam surfar
em mundos virtuais e não virtuais, livres das limitações da
química orgânica. Depois de 4 bilhões de anos perambulando no
reino dos compostos orgânicos, a vida eclodirá na vastidão do
reino inorgânico e assumirá formas que não podemos vislumbrar
mesmo em nossos sonhos mais loucos. Afinal, esses sonhos ainda são
produto da química orgânica.
Sair
fora do reino orgânico poderia permitir que a vida finalmente saísse
do planeta Terra também. Durante 4 bilhões de anos a vida
permaneceu confinada a este minúsculo fragmento de planeta porque a
seleção natural fez todos os organismos serem totalmente
dependentes de condições exclusivas desta rocha voadora. Nem mesmo
as bactérias mais resistentes podem sobreviver em Marte. Uma
inteligência artificial não orgânica, em contraste, vai achar que
é muito mais fácil colonizar outros planetas. A substituição da
vida orgânica por seres inorgânicos pode portanto ser a semente de
um futuro império galáctico, governado por símiles de Mr. Dados e
não por Darth Vader.
Não
sabemos para onde esses caminhos podem nos levar, nem que aparência
terão nossos descendentes divinoides. Predizer o futuro nunca foi
fácil, e biotecnologias avançadas podem dificultar essa empreitada.
Por mais difícil que seja prever o impacto de novas tecnologias em
campos como transportes, comunicação e energia, tecnologias para o
aprimoramento de seres humanos representam um tipo de desafio
totalmente distinto. Como podem ser usadas para transformar mentes e
desejos humanos, pessoas que têm mentes e desejos atuais não podem,
por definição, compreender suas implicações.
Por
milhares de anos reviravoltas tecnológicas, econômicas, sociais e
políticas fizeram parte da história. Mas algo permaneceu constante:
a humanidade em si mesma. Nossos instrumentos e instituições atuais
são muito diferentes daqueles dos tempos bíblicos, mas as
estruturas mais profundas na mente humana não se alteraram. Por isso
ainda conseguimos nos reconhecer nas páginas da Bíblia, nos textos
de Confúcio ou nas tragédias de Sófocles e Eurípides. Esses
clássicos foram criados por humanos como nós, e sentimos que eles
falam a nosso respeito. Em produções teatrais modernas, Édipo,
Hamlet e Otelo poderiam vestir jeans e camisetas e ter contas no
Facebook, mas seus conflitos emocionais seriam os mesmos dos da peça
original.
No
entanto, assim que a tecnologia permitir a reengenharia das mentes
humanas, o Homo sapiens vai desaparecer, a história humana
caminhará para seu fim, e um tipo de processo completamente novo vai
surgir, incompreensível para pessoas como você e eu. Muitos
estudiosos tentam prever qual será o aspecto do mundo em 2100 ou em
2200. É uma perda de tempo. Qualquer previsão, para ser válida,
deve levar em conta a capacidade de reengenharia das mentes humanas,
e isso é impossível. Há muitas respostas sensatas para a pergunta:
“O que pessoas com mentes como as nossas fariam com a
biotecnologia?”. Porém, não há boas respostas para esta: “O
que seres com um tipo diferente de mente fariam com a
biotecnologia?”. Tudo o que podemos dizer é que pessoas como nós
provavelmente usariam a biotecnologia na reengenharia das próprias
mentes e que nossas mentes atuais não conseguem captar o que pode
acontecer depois.
Mesmo
que os detalhes sejam obscuros, podemos ter uma noção correta da
direção geral da história. No século XXI, o terceiro grande
projeto da humanidade será adquirir poderes divinos de criação e
destruição e elevar o Homo sapiens à condição de Homo
deus. Esse terceiro projeto obviamente engloba os dois primeiros
e é por eles alimentado. Queremos ter a capacidade de fazer a
reengenharia de nosso corpo e mente acima de tudo para escapar à
velhice, à morte e à infelicidade, mas, uma vez dispondo disso, o
que mais poderíamos fazer com tal capacidade? Assim, bem podemos
pensar que a nova agenda humana na realidade consiste em um só
projeto (com muitos ramos): alcançar a divindade.
Se
isso não soa científico ou se parece totalmente excêntrico, é
porque com frequência as pessoas entendem mal o sentido da
divindade. Divindade não é uma vaga qualidade metafísica. E não é
o mesmo que onipotência. Quando se fala em elevar humanos à
condição de deuses, a ideia diz mais respeito aos deuses gregos, ou
aos devas hindus, do que a um pai celestial bíblico e onipotente.
Nossos descendentes ainda teriam seus pontos fracos, suas
imperfeições e limitações, assim como Zeus e Indra tiveram os
seus. Mas seriam capazes de amar, odiar, criar e destruir numa escala
muito maior do que a nossa.
No
decorrer da história acreditou-se que a maioria dos deuses não era
onipotente, mas possuía supercapacidades específicas, tais como a
de projetar e criar seres vivos; transformar o próprio corpo;
controlar o meio ambiente e o clima; ler mentes e se comunicar à
distância; movimentar-se a velocidades muito altas e obviamente
escapar da morte e viver infinitamente. Os seres humanos estão
tratando de adquirir todas essas capacidades, e outras mais. Certas
aptidões tradicionais, que durante milênios foram consideradas
divinas, tornaram-se tão comuns que quase não pensamos nelas. Hoje,
uma pessoa mediana se move e se comunica a grandes distâncias com
muito mais facilidade do que antigos deuses gregos, hindus ou
africanos. Por exemplo, o povo Igbo da Nigéria acredita que no
início Chukwu, o deus da criação, quis fazer as pessoas imortais.
Ele mandou um cão dizer aos humanos que deveriam borrifar o corpo
dos mortos com cinzas, e com isso o corpo voltaria à vida.
Infelizmente, o cão estava cansado e demorou-se no caminho. O
impaciente Chukwu enviou então uma ovelha, dizendo-lhe que se
apressasse em levar essa importante mensagem. Mas, quando chegou a
seu destino, a ofegante ovelha confundiu as instruções e disse aos
humanos que enterrassem seus mortos; por essa razão, a morte
tornou-se permanente. Por isso, até hoje nós humanos temos de
morrer. Se Chukwu, em vez de se valer de cães morosos ou ovelhas
obtusas para transmitir suas mensagens, ao menos tivesse uma conta no
Twitter! Em antigas sociedades agrícolas, a maioria das religiões
não girava em torno de questões metafísicas e do pós-vida, mas da
mundana questão de aumentar a produção agrícola. Assim, o Antigo
Testamento nunca promete nenhuma recompensa ou punição após a
morte. Em vez disso, diz ao povo de Israel: “Se vocês cumprirem
rigorosamente os mandamentos que lhes estou dando […] Eu enviarei
chuva sobre a terra em sua estação […] e vocês colherão grão,
vinho e óleo. Eu lhes proverei pasto nos campos para seu gado, e
vocês comerão e se fartarão. Tenham cuidado! De outro modo, seus
corações os enganarão e vocês se voltarão para servir outros
deuses e os cultuar. A ira de Deus arderá contra vocês de tal modo
que ele conterá os céus e não choverá. A terra não concederá
seu produto e vocês serão rapidamente desprovidos da boa terra que
o Senhor está prestes a lhes dar” (Deuteronômio 11,13-17).
Atualmente os cientistas podem fazer muito melhor do que o Deus do
Antigo Testamento. Graças a fertilizantes artificiais, inseticidas
industriais e safras geneticamente modificadas, a produção agrícola
hoje ultrapassa as mais altas expectativas que os antigos
agricultores tinham de seus deuses. E o ressecado Estado de Israel
não teme mais que alguma divindade irada contenha os céus e detenha
todas as chuvas — pois os israelenses construíram recentemente uma
imensa usina de dessalinização na costa do Mediterrâneo, de modo
que já podem extrair água potável do mar.
Até
agora estávamos competindo com os deuses da Antiguidade na criação
de ferramentas cada vez melhores. Num futuro não tão distante
poderíamos criar super-humanos capazes de exceder os deuses antigos
não em suas ferramentas, mas em suas faculdades corporais e mentais.
Se e quando chegarmos lá, no entanto, a divindade terá se tornado
tão corriqueira quanto o ciberespaço — uma maravilha das
maravilhas que já consideramos como certa.
É
certo que os humanos se esforçarão para atingir a divindade, pois
têm muitos motivos para querer essa atualização e muitos caminhos
para consegui-la. Mesmo que um caminho promissor se revele um beco
sem saída, rotas alternativas permanecerão abertas. Por exemplo,
talvez descubramos que o genoma humano é complicado demais para ser
manipulado com seriedade, mas isso não impede o desenvolvimento de
interfaces entre cérebro, computador, nanorrobôs ou inteligência
artificial.
Não
é preciso entrar em pânico, contudo. Pelo menos não imediatamente.
A elevação do Sapiens a um nível superior será mais um processo
histórico gradual do que um apocalipse hollywoodiano. O Homo
sapiens não vai ser exterminado por um levante de robôs. É
mais provável que sua atualização ocorra passo a passo,
fundindo-se no processo com robôs e computadores, até que nossos
descendentes olhem para trás e se deem conta de que não são mais o
tipo de animal que escreveu a Bíblia, construiu a Grande Muralha da
China e riu das graças de Charles Chaplin. Isso não vai acontecer
em um dia nem em um ano. Na verdade, já está acontecendo neste
momento como resultado de inúmeras ações cotidianas. Todo dia
milhões de pessoas decidem dar a seu smartphone um pouco mais
de controle sobre suas vidas, ou experimentam uma droga
antidepressiva nova e mais eficaz. Na busca de saúde, felicidade e
poder, os humanos modificarão primeiro uma de suas características,
depois outra, e outra, até não serem mais humanos.
Yuval
Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
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