sexta-feira, 17 de maio de 2019

Quando eu gosto eu digo

Acho que já contei essa história. Não tenho certeza. Minha memória me trai. De qualquer forma, as repetições são bem-vindas. Todo compositor repete os seus temas. Tudo o que comove deve ser repetido. Foi assim. Passava diariamente à frente da minha casa uma moça. Teria seus vinte anos. Ela tinha um defeito na sua perna, o que a fazia mancar. Da janela da minha casa, protegido pelas cortinas, eu a observava. Seu rosto era bonito. E me dava uma vontade imensa de atravessar a rua, ir até ela e lhe dizer: “Acho você muito bonita...”. E, sem esperar resposta, voltar depressa para minha casa. Nunca o fiz, por medo. Medo de que ela não me entendesse. Fico a pensar: “Por que temos medo de dizer a uma pessoa que gostamos dela?”. Minha mãe, imagino que ela gostasse de mim. Mas ela nunca me disse. Nem o meu pai. Teria sido tão bom se ela me abraçasse e dissesse: “Meu filho, como eu gosto de você!”. Dirão que não é preciso. Discordo. É preciso. Escrevi uma carta para meu irmão mais velho que começava assim: “Meu querido irmão Ismael...”. Ele me respondeu espantado: “É a primeira vez na minha vida que alguém me chama de querido”. E ele já estava nos seus 75 anos de idade! Resolvi que não vou ficar atrás da cortina, espiando. Quando gosto, eu digo.
Rubem Alves, Do universo à jabuticaba

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