Senhoras,
Senhores,
Vejo-me
em situação difícil — e não poderei representar
convenientemente este papel. Ler um discurso é ação temerosa:
faltam-me elementos para semelhante gênero.
Além
disso aqui se dá um caso perturbador: é que, tendo achado apoio em
cada um dos senhores, de repente me sinto como se estivesse isolado.
Evidentemente os favores recebidos não se diluíram: reforçam-se,
manifestam-se de jeito que seria ingratidão e insensatez duvidar
deles. Mas tomaram feição esquisita, surgem-me todos juntos,
esmagadores, e isto nunca esperei.
Realmente,
se é fácil abraçar um camarada na livraria ou no jornal, dizer-lhe
palavras de agradecimento e oferecer-lhe préstimos diminutos, à rua
tal, número tanto, acho empresa considerável reunir essas parcelas
de gratidão, dar-lhes forma literária, datilografá-las,
pronunciá-las com gestos adequados, em pé, junto a uma mesa. Seria
preciso fazer um catálogo de benefícios, trabalho arriscado:
faltaria algum nome, escaparia um fato — e a omissão não teria
desculpa.
Assim,
meus senhores e amigos, confessando honestamente haver contraído uma
dívida insolúvel para com os escritores nacionais e alguns
estrangeiros (felizmente esta palavra hoje pouco significa), é
prudente limitar-me a uma referência coletiva, dizer que estou
assombrado e tentar, se isto for possível, senão justificar, pelo
menos explicar esta reunião.
Naturalmente
devo mencionar Augusto Frederico Schmidt, por ele haver tomado o
encargo de saudar-me e por ter feito, 12 anos atrás, uma descoberta
nas brenhas alagoanas. Falavam muito nesse tempo em realidade
brasileira — e esta frase tornou-se chavão na boca de sujeitos que
do Brasil conheciam pela rama o asfalto, o café e a Cinelândia.
Schmidt estirou os olhos por estes cafundós e, lendo a prosa cheia
de algarismos e parágrafos de certo prefeito, julgou perceber
qualquer coisa semelhante a um literato em Palmeira dos Índios.
Supôs isso — e pediu ao funcionário um romance, que foi impresso,
comentado, e ficou meio inédito, graças a Deus, pois é um
desastre. Por aí notamos aonde vai a imaginação de Schmidt. Só
ele acharia proveito numa composição burocrática, minuciosa e
coberta de cifrões. Com certeza se desenganou, mas insistiu em
publicar o livro — e o resultado é o que se vê.
Fui
eu, meus senhores e amigos, esse novelista pescado no sertão de
Alagoas por umas cartas que Rômulo de Castro me enviou, de 1930 a
1931, em nome de Schmidt. Desde então ocorrências de vulto me
atrapalharam. Seria melhor que eu tivesse continuado a envelhecer na
cidadezinha poeirenta, jogando o xadrez e o gamão, tratando dos meus
negócios miúdos, ouvindo as intermináveis arengas das calçadas,
refugiando-me à tarde na igreja matriz, enorme, onde fiz 19
capítulos de S. Bernardo. Seria melhor. Infelizmente não me
foi possível orientar-me. Os acontecimentos forçaram-me a
deslocações imprevistas.
Julgo
que se dá isso com toda a gente. Há dez anos, na Europa central,
Otto Maria Carpeaux e Paulo Rónai andavam pelas universidades e não
sonhavam percorrer e estudar um dia a nossa terra e a nossa
literatura. José Lins do Rego era um excelente fiscal de bancos,
depois de ter sido juiz em Minas Gerais. Tinha produzido uns artigos,
mas se falassem no Ciclo da cana-de-açúcar, ele se
espantaria. Aurélio Buarque de Holanda, quase criança ainda,
trabalhava no Orfanato São Domingos, acumulava livros na sua casinha
da Cambona e redigia poemas que se machucavam, em pedaços de papel,
por todos os bolsos, e voltavam da lavanderia completamente
ilegíveis. É claro que esses homens, nascidos sob diferentes
signos, em pontos diferentes do planeta, nenhum esforço fizeram por
juntar-se e auxiliar-se. As encrencas da Europa lançaram Paulo Rónai
e Otto Maria Carpeaux no Rio de Janeiro, onde estes mestres aplicam a
sua cultura numa análise fria do material que lhes fornecemos. José
Lins do Rego tinha no espírito banguês, canaviais, bagaceiras e
casas-grandes. Deu à luz uma região do Nordeste — e o Aterro de
Jaraguá tornou-se pequeno para contê-lo. Aurélio Buarque de
Holanda possuía uma avó indefinível — d. Cândida Rosa. Aurélio
definiu-a em dois trabalhos, fixou-lhe rigorosamente a língua e a
figura. E d. Cândida Rosa começou a viver. D. Cândida Rosa
concebeu Aurélio, Aurélio concebeu d. Cândida Rosa. Não tenho
culpa desse absurdo. Na verdade ele realizou muitas outras coisas.
Publicou um livro de contos, ensinou português no Pedro II e
consertou um dicionário, mas tudo foi determinado por d. Cândida
Rosa. E aí temos a guerra, os engenhos e d. Cândida Rosa influindo
na existência de alguns indivíduos, fazendo que eles imaginassem
deliberar conhecer de perto Copacabana e a rua do Ouvidor.
Quanto
a mim, nem sequer me resta a ilusão de haver pretendido voltar ao
Rio, onde quase me hospedei na livraria José Olympio. Não pretendi.
Embarquei em Maceió sem pagar passagem, saltei no Recife, embarquei
de novo e estive alguns dias mal acomodado, não porém em situação
pior que a de numerosos viajantes, pois o navio era uma
insignificância, muito suja, e nos tinham reservado o porão. Aqui,
num carro fechado, não pude admirar as roupas novas e os
arranha-céus. Alojei-me num quarto molhado, transferi-me a outro, já
ocupado por legiões de insetos domésticos, morei numa estalagem
onde pijamas eram roupas de luxo, que se vestiam pelo avesso, porque
muitos dos habitantes costumavam introduzir com habilidade as mãos
nas algibeiras alheias e esvaziá-las. Muitos inconvenientes. E
algumas vantagens: não íamos ao cinema, não concorríamos para
homenagens indébitas a valores improvisados, não nos aborrecíamos
com o aluguel de casa, enfim éramos forçados a cultivar a economia,
a mais útil das virtudes agora. Não nos alimentávamos em demasia.
Também não trabalhávamos. Deram-nos um longo repouso, quase
espiritual — e isto muito contribuiu para melhorar os nossos
costumes.
Posto
em circulação, muitas dificuldades me apareceram e tive de escolher
um ofício. Caí na literatura: todas as outras portas se fechavam.
As razões que me trouxeram foram, pois, muito poderosas — e em vão
me rebelaria contra elas.
Alguém
estranhou há tempo que eu não pudesse tomar uma decisão.
Efetivamente não me decido, sempre as circunstâncias me compeliram,
fizeram de mim uma desgraçada marionette. Em 1914
arremessaram-me à capital e converteram-me em foca de revisão. Em
fim de 1915 levaram-me de regresso ao interior de Alagoas, meteram-me
no comércio. Deram-me alguma prosperidade, que logo se desfez,
confiaram-me a administração do município. Quando, no começo de
1930, larguei a prefeitura sem concluir o mandato, arrojaram-me à
imprensa oficial, aos jornais, ao hospital, à instrução pública.
E aqui estou, depois de muitas quedas e de pequeninos saltos, olhando
as paredes do cemitério bem próximo. Nunca tentei elevar-me algumas
polegadas. É certo que estraguei papel e tinta, mas procedi assim
por motivos de ordem particular. Um vício como outro qualquer. E
esforcei-me por escondê-lo. Não amolei os editores, não solicitei
um cantinho nas revistas e nos suplementos semanais. Foi Schmidt quem
teve a ideia estranha de pedir romance a um sertanejo ocupado em
escrituração mercantil, orçamentos e relatórios. Foi José
Olympio quem me escreveu, em 1935, exigindo os originais de Angústia.
De sorte que, meus senhores e amigos, não me responsabilizo pelos
efeitos contraditórios que as minhas narrativas produziram.
Houve
de fato julgamentos opostos, o que evidencia ser inútil afligir-se a
gente por obter isto ou aquilo. O que nos chega não depende das
nossas ações e dos nossos desejos. Esses livrinhos já foram
considerados fatores de corrupção, matéria escandalosa. É verdade
que não se fez o ataque de modo preciso, em conformidade com as
regras; tendo-me, porém, sucedido um desarranjo (com viagens
gratuitas, porões, jejum, insetos incômodos, referidos), certo
crítico nordestino, que pouco antes me surgira com uma carta de
recomendação, muitos sorrisos e um pedido, logo viu nos meus
escritos perversidades horríveis e reclamou para mim os mais severos
castigos. Várias pessoas discordaram, mas não estavam em condição
de revelar-se. E o juízo do rigoroso censor prevaleceu durante um
ano.
A
essa dureza contrapõe-se a generosidade que os senhores manifestam.
Pergunto a causa dela, como perguntei a mim mesmo por que me trataram
de modo completamente diverso.
Acho-me
na situação em que há tempo se achou um político meu conterrâneo,
apagado e municipal como eu. Esse tipo, que gastou a mocidade
colaborando nos fuxicos locais, passando telegramas a figurões,
aliciando leitores, desmanchando-se em promessas irrealizáveis, ora
na oposição, ora no governo, foi, em consequência de sérios
desconchavos públicos, incluído numa chapa oficial, e aportou no
Rio de Janeiro, como deputado. Não brilhou na Câmara, porque tinha
natureza espessa, mas votou conforme as ordens, prodigalizou xícaras
de café aos conhecidos da província, convidou sujeitos influentes
para almoços detestáveis no seu hotelzinho da rua do Catete,
trabalhou com afinco para reeleger-se, o que não conseguiu. Finda a
legislatura, recolheu-se. Embarque, enjoo, desembarque, formalidades,
conversas inoportunas com repórteres indiscretos — afinal foi
recebido numa estação da Great Western com lanternas de
papel, foguetes e músicas da filarmônica. Ofereceram-lhe um jantar.
E em discursos lembraram os benefícios prestados por ele ao
município e ao Brasil. Ouvindo aquelas gentilezas, o nosso homem
provavelmente suava. E provavelmente confessava no íntimo:
— Que
diabo! Não fiz nada. E se tivesse querido fazer qualquer coisa, isto
seria impossível. Não sei nada.
Mas
como atirar semelhante franqueza aos camaradas que lhe sorriam, que o
elevavam, hiperbolicamente? Aceitou, portanto, os elogios,
declarou-se digno deles, considerou justos os foguetes, os dobrados
da filarmônica, as lanternas de papel e as hipérboles.
Como
esse indivíduo, meus senhores e amigos, deixei o meu povoado
cambembe, meti-me em cavalarias altas. Enchi-me de fumaças, vim
morar perto da rua do Catete, simulei autoridade e, perigando em
conversas inacessíveis ao meu entendimento, encerrei-me grave num
silêncio razoável. Escondi uma reles tragédia, cuidadoso,
envelheci, afastei-me. E, neste fim de vida melancólico, vejo-me com
muitas das pessoas que, em momentos difíceis, me ampararam e
disseram a palavra conveniente. Sem esse amparo e sem essa palavra,
não estaríamos hoje aqui.
Mas
por que estamos aqui? Certamente não faço a ingênua declaração
do meu conterrâneo deputado, que não achou a razão das hipérboles,
das músicas e dos foguetes. É preciso descobrirmos um motivo para
esta reunião. Penso, meus senhores e amigos, que a devemos à
existência de algumas figuras responsáveis pelos meus livros —
Paulo Honório, Luís da Silva, Fabiano. Ninguém dirá que sou
vaidoso referindo-me a esses três indivíduos, porque não sou Paulo
Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que
pude por exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos
pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível
que eu tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os recursos
duma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido
animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem
apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus
vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso aqui me
reduzo à condição de aparelho registrador — e nisto não há
mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá.
Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos
os infelizes, que povoam a terra.
Graciliano
Ramos, in Garranchos (em seu quinquagésimo aniversário,
em 27 de outubro de 1942, em jantar realizado no restaurante Lido, em
Copacabana)
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