sexta-feira, 17 de maio de 2019

Discurso de Graciliano Ramos

Senhoras,
Senhores,

Vejo-me em situação difícil — e não poderei representar convenientemente este papel. Ler um discurso é ação temerosa: faltam-me elementos para semelhante gênero.
Além disso aqui se dá um caso perturbador: é que, tendo achado apoio em cada um dos senhores, de repente me sinto como se estivesse isolado. Evidentemente os favores recebidos não se diluíram: reforçam-se, manifestam-se de jeito que seria ingratidão e insensatez duvidar deles. Mas tomaram feição esquisita, surgem-me todos juntos, esmagadores, e isto nunca esperei.
Realmente, se é fácil abraçar um camarada na livraria ou no jornal, dizer-lhe palavras de agradecimento e oferecer-lhe préstimos diminutos, à rua tal, número tanto, acho empresa considerável reunir essas parcelas de gratidão, dar-lhes forma literária, datilografá-las, pronunciá-las com gestos adequados, em pé, junto a uma mesa. Seria preciso fazer um catálogo de benefícios, trabalho arriscado: faltaria algum nome, escaparia um fato — e a omissão não teria desculpa.
Assim, meus senhores e amigos, confessando honestamente haver contraído uma dívida insolúvel para com os escritores nacionais e alguns estrangeiros (felizmente esta palavra hoje pouco significa), é prudente limitar-me a uma referência coletiva, dizer que estou assombrado e tentar, se isto for possível, senão justificar, pelo menos explicar esta reunião.
Naturalmente devo mencionar Augusto Frederico Schmidt, por ele haver tomado o encargo de saudar-me e por ter feito, 12 anos atrás, uma descoberta nas brenhas alagoanas. Falavam muito nesse tempo em realidade brasileira — e esta frase tornou-se chavão na boca de sujeitos que do Brasil conheciam pela rama o asfalto, o café e a Cinelândia. Schmidt estirou os olhos por estes cafundós e, lendo a prosa cheia de algarismos e parágrafos de certo prefeito, julgou perceber qualquer coisa semelhante a um literato em Palmeira dos Índios. Supôs isso — e pediu ao funcionário um romance, que foi impresso, comentado, e ficou meio inédito, graças a Deus, pois é um desastre. Por aí notamos aonde vai a imaginação de Schmidt. Só ele acharia proveito numa composição burocrática, minuciosa e coberta de cifrões. Com certeza se desenganou, mas insistiu em publicar o livro — e o resultado é o que se vê.
Fui eu, meus senhores e amigos, esse novelista pescado no sertão de Alagoas por umas cartas que Rômulo de Castro me enviou, de 1930 a 1931, em nome de Schmidt. Desde então ocorrências de vulto me atrapalharam. Seria melhor que eu tivesse continuado a envelhecer na cidadezinha poeirenta, jogando o xadrez e o gamão, tratando dos meus negócios miúdos, ouvindo as intermináveis arengas das calçadas, refugiando-me à tarde na igreja matriz, enorme, onde fiz 19 capítulos de S. Bernardo. Seria melhor. Infelizmente não me foi possível orientar-me. Os acontecimentos forçaram-me a deslocações imprevistas.
Julgo que se dá isso com toda a gente. Há dez anos, na Europa central, Otto Maria Carpeaux e Paulo Rónai andavam pelas universidades e não sonhavam percorrer e estudar um dia a nossa terra e a nossa literatura. José Lins do Rego era um excelente fiscal de bancos, depois de ter sido juiz em Minas Gerais. Tinha produzido uns artigos, mas se falassem no Ciclo da cana-de-açúcar, ele se espantaria. Aurélio Buarque de Holanda, quase criança ainda, trabalhava no Orfanato São Domingos, acumulava livros na sua casinha da Cambona e redigia poemas que se machucavam, em pedaços de papel, por todos os bolsos, e voltavam da lavanderia completamente ilegíveis. É claro que esses homens, nascidos sob diferentes signos, em pontos diferentes do planeta, nenhum esforço fizeram por juntar-se e auxiliar-se. As encrencas da Europa lançaram Paulo Rónai e Otto Maria Carpeaux no Rio de Janeiro, onde estes mestres aplicam a sua cultura numa análise fria do material que lhes fornecemos. José Lins do Rego tinha no espírito banguês, canaviais, bagaceiras e casas-grandes. Deu à luz uma região do Nordeste — e o Aterro de Jaraguá tornou-se pequeno para contê-lo. Aurélio Buarque de Holanda possuía uma avó indefinível — d. Cândida Rosa. Aurélio definiu-a em dois trabalhos, fixou-lhe rigorosamente a língua e a figura. E d. Cândida Rosa começou a viver. D. Cândida Rosa concebeu Aurélio, Aurélio concebeu d. Cândida Rosa. Não tenho culpa desse absurdo. Na verdade ele realizou muitas outras coisas. Publicou um livro de contos, ensinou português no Pedro II e consertou um dicionário, mas tudo foi determinado por d. Cândida Rosa. E aí temos a guerra, os engenhos e d. Cândida Rosa influindo na existência de alguns indivíduos, fazendo que eles imaginassem deliberar conhecer de perto Copacabana e a rua do Ouvidor.
Quanto a mim, nem sequer me resta a ilusão de haver pretendido voltar ao Rio, onde quase me hospedei na livraria José Olympio. Não pretendi. Embarquei em Maceió sem pagar passagem, saltei no Recife, embarquei de novo e estive alguns dias mal acomodado, não porém em situação pior que a de numerosos viajantes, pois o navio era uma insignificância, muito suja, e nos tinham reservado o porão. Aqui, num carro fechado, não pude admirar as roupas novas e os arranha-céus. Alojei-me num quarto molhado, transferi-me a outro, já ocupado por legiões de insetos domésticos, morei numa estalagem onde pijamas eram roupas de luxo, que se vestiam pelo avesso, porque muitos dos habitantes costumavam introduzir com habilidade as mãos nas algibeiras alheias e esvaziá-las. Muitos inconvenientes. E algumas vantagens: não íamos ao cinema, não concorríamos para homenagens indébitas a valores improvisados, não nos aborrecíamos com o aluguel de casa, enfim éramos forçados a cultivar a economia, a mais útil das virtudes agora. Não nos alimentávamos em demasia. Também não trabalhávamos. Deram-nos um longo repouso, quase espiritual — e isto muito contribuiu para melhorar os nossos costumes.
Posto em circulação, muitas dificuldades me apareceram e tive de escolher um ofício. Caí na literatura: todas as outras portas se fechavam. As razões que me trouxeram foram, pois, muito poderosas — e em vão me rebelaria contra elas.
Alguém estranhou há tempo que eu não pudesse tomar uma decisão. Efetivamente não me decido, sempre as circunstâncias me compeliram, fizeram de mim uma desgraçada marionette. Em 1914 arremessaram-me à capital e converteram-me em foca de revisão. Em fim de 1915 levaram-me de regresso ao interior de Alagoas, meteram-me no comércio. Deram-me alguma prosperidade, que logo se desfez, confiaram-me a administração do município. Quando, no começo de 1930, larguei a prefeitura sem concluir o mandato, arrojaram-me à imprensa oficial, aos jornais, ao hospital, à instrução pública. E aqui estou, depois de muitas quedas e de pequeninos saltos, olhando as paredes do cemitério bem próximo. Nunca tentei elevar-me algumas polegadas. É certo que estraguei papel e tinta, mas procedi assim por motivos de ordem particular. Um vício como outro qualquer. E esforcei-me por escondê-lo. Não amolei os editores, não solicitei um cantinho nas revistas e nos suplementos semanais. Foi Schmidt quem teve a ideia estranha de pedir romance a um sertanejo ocupado em escrituração mercantil, orçamentos e relatórios. Foi José Olympio quem me escreveu, em 1935, exigindo os originais de Angústia. De sorte que, meus senhores e amigos, não me responsabilizo pelos efeitos contraditórios que as minhas narrativas produziram.
Houve de fato julgamentos opostos, o que evidencia ser inútil afligir-se a gente por obter isto ou aquilo. O que nos chega não depende das nossas ações e dos nossos desejos. Esses livrinhos já foram considerados fatores de corrupção, matéria escandalosa. É verdade que não se fez o ataque de modo preciso, em conformidade com as regras; tendo-me, porém, sucedido um desarranjo (com viagens gratuitas, porões, jejum, insetos incômodos, referidos), certo crítico nordestino, que pouco antes me surgira com uma carta de recomendação, muitos sorrisos e um pedido, logo viu nos meus escritos perversidades horríveis e reclamou para mim os mais severos castigos. Várias pessoas discordaram, mas não estavam em condição de revelar-se. E o juízo do rigoroso censor prevaleceu durante um ano.
A essa dureza contrapõe-se a generosidade que os senhores manifestam. Pergunto a causa dela, como perguntei a mim mesmo por que me trataram de modo completamente diverso.
Acho-me na situação em que há tempo se achou um político meu conterrâneo, apagado e municipal como eu. Esse tipo, que gastou a mocidade colaborando nos fuxicos locais, passando telegramas a figurões, aliciando leitores, desmanchando-se em promessas irrealizáveis, ora na oposição, ora no governo, foi, em consequência de sérios desconchavos públicos, incluído numa chapa oficial, e aportou no Rio de Janeiro, como deputado. Não brilhou na Câmara, porque tinha natureza espessa, mas votou conforme as ordens, prodigalizou xícaras de café aos conhecidos da província, convidou sujeitos influentes para almoços detestáveis no seu hotelzinho da rua do Catete, trabalhou com afinco para reeleger-se, o que não conseguiu. Finda a legislatura, recolheu-se. Embarque, enjoo, desembarque, formalidades, conversas inoportunas com repórteres indiscretos — afinal foi recebido numa estação da Great Western com lanternas de papel, foguetes e músicas da filarmônica. Ofereceram-lhe um jantar. E em discursos lembraram os benefícios prestados por ele ao município e ao Brasil. Ouvindo aquelas gentilezas, o nosso homem provavelmente suava. E provavelmente confessava no íntimo:
Que diabo! Não fiz nada. E se tivesse querido fazer qualquer coisa, isto seria impossível. Não sei nada.
Mas como atirar semelhante franqueza aos camaradas que lhe sorriam, que o elevavam, hiperbolicamente? Aceitou, portanto, os elogios, declarou-se digno deles, considerou justos os foguetes, os dobrados da filarmônica, as lanternas de papel e as hipérboles.
Como esse indivíduo, meus senhores e amigos, deixei o meu povoado cambembe, meti-me em cavalarias altas. Enchi-me de fumaças, vim morar perto da rua do Catete, simulei autoridade e, perigando em conversas inacessíveis ao meu entendimento, encerrei-me grave num silêncio razoável. Escondi uma reles tragédia, cuidadoso, envelheci, afastei-me. E, neste fim de vida melancólico, vejo-me com muitas das pessoas que, em momentos difíceis, me ampararam e disseram a palavra conveniente. Sem esse amparo e sem essa palavra, não estaríamos hoje aqui.
Mas por que estamos aqui? Certamente não faço a ingênua declaração do meu conterrâneo deputado, que não achou a razão das hipérboles, das músicas e dos foguetes. É preciso descobrirmos um motivo para esta reunião. Penso, meus senhores e amigos, que a devemos à existência de algumas figuras responsáveis pelos meus livros — Paulo Honório, Luís da Silva, Fabiano. Ninguém dirá que sou vaidoso referindo-me a esses três indivíduos, porque não sou Paulo Honório, não sou Luís da Silva, não sou Fabiano. Apenas fiz o que pude por exibi-los, sem deformá-los, narrando, talvez com excessivos pormenores, a desgraça irremediável que os açoita. É possível que eu tenha semelhança com eles e que haja, utilizando os recursos duma arte capenga adquirida em Palmeira dos Índios, conseguido animá-los. Admitamos que artistas mais hábeis não pudessem apresentar direito essas personagens, que, estacionando em degraus vários da sociedade, têm de comum o sofrimento. Neste caso aqui me reduzo à condição de aparelho registrador — e nisto não há mérito. Acertei? Se acertei, todo o constrangimento desaparecerá. Associo-me aos senhores numa demonstração de solidariedade a todos os infelizes, que povoam a terra.
Graciliano Ramos, in Garranchos (em seu quinquagésimo aniversário, em 27 de outubro de 1942, em jantar realizado no restaurante Lido, em Copacabana)

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