Admiro
os dentistas, profissionais que usam em seu trabalho instrumentos
pontiagudos e afiados; no entanto, o fazem com extrema paciência.
Alguns esbanjam delicadeza e tato. Claro que a anestesia ajuda muito;
mesmo assim, os gestos meticulosos das mãos do dentista, a
inclinação da broca ou da pinça, a própria agulhada da anestesia,
tudo isso depende de uma habilidade ímpar.
Dentistas
são seres solitários diante do sofrimento do paciente, por isso
exercitam um monólogo demorado, a fim de exorcizar a solidão. Um
paciente de boca aberta, mas incapaz de pronunciar uma palavra parece
uma estátua viva, anestesiada. Não pode falar nem sorrir. Rir, nem
pensar. Talvez concorde ou discorde com um som gutural, patético,
que vez ou outra se confunde com um esgar de sofrimento.
Há
mais de dez anos um dentista começou a contar por que era infeliz
com a esposa, e quando tive vontade de dizer algo — ou pude de fato
falar — ele já contava as delícias do terceiro casamento.
Já
nem sei quantas histórias de vida ouvi enquanto o dentista fazia o
tratamento de um canal. E basta uma limpeza de dentes para que o
paciente escute — entre tártaros retirados com uma pinça
inclemente — um episódio picante, um lance venturoso ou
desconcertante da vida do profissional ou da vida alheia.
Gosto
de dentistas indiscretos e dos que inventam histórias durante a
consulta. É um momento raro em que o paciente sentado ou quase
deitado assume ares de psicanalista. Enquanto a broca zune, a voz do
dentista narra cenas extraordinárias ou viagens insólitas; no fim,
com a gengiva inchada e a boca insensível pela anestesia capaz de
derrubar um cavalo, sinto-me revigorado por ter escutado tantas
histórias.
Na
minha relação com os dentistas ou com a odontologia, lembro-me de
dois episódios marcantes. O primeiro, traumático, me remete ao
dentista da minha adolescência. Era um homem pouco sutil, cujo olhar
penetrante e a cabeça careca e reluzente lembravam o ator russo Yul
Brynner. A decoração do consultório parecia o cenário de um
romance gótico. Tudo era tétrico e sombrio, e quando Yul Brynner
acendia o foco, eu sabia que ia sofrer.
Talvez
ele tenha sido o penúltimo boticário da minha cidade. Mas isso era
o de menos. Certa vez, enquanto arrancava um dente, cantava uma ária
com uma voz tão cortante e desafinada que meus ouvidos doíam mais
que a boca. Esse solista romântico e fora do tom quase me
enlouqueceu. Quando saí do consultório, procurei um dentista mudo,
mas nenhum dentista do mundo é totalmente mudo.
Minha
segunda lembrança não aconteceu na cadeira do paciente, e sim na
sala de aula. Eu lecionava literatura francesa e, pouco antes do
começo do semestre letivo, o chefe do departamento me escalou para
dar aula de francês instrumental para finalistas do curso de
odontologia. Em poucos dias, tive que ler artigos em francês sobre
gengivite, periodontite, formação de bolsas peridentais, cirurgia
maxilofacial, implantes; tive que aprender o nome de dezenas de tipos
de brocas e pinças, e essa terminologia técnica me causou
pesadelos, como se eu fosse um paciente de pé na sala cheia de
estudantes ávidos de aprender palavras e frases de odontologia na
língua de Maupassant.
No
fim do curso, fui convidado a assistir a algumas aulas práticas, em
que os finalistas exibiam sua habilidade de quase dentistas na boca
dos pobres e humildes da minha cidade. Um aluno que atendia a uma
mulher idosa quis explicar a causa de um sangramento na gengiva da
paciente. Fechei os olhos e murmurei alguma coisa, concordando com a
explicação. Depois ele disse: “Esta senhora nunca tratou dos
dentes, por isso ela perdeu quase todos”. E então soube que de
cada dez pacientes, três eram desdentados. Também essa palavra —
desdentados — os alunos conheciam em francês. Mas será necessário
aos alunos de odontologia um curso de francês instrumental se
milhões de brasileiros pobres não podem escovar os dentes nem
tratá-los?
Milton
Hatoum, in Um solitário à espreita
Nenhum comentário:
Postar um comentário