Meus sonhos
Os
meus sonhos
eram de muitas espécies mas representavam manifestações de um
único estado de alma. Ora sonhava ser um Cristo, a sacrificar-me
para redimir a humanidade, ora um Lutero, a quebrar com todas as
convenções estabelecidas, ora um Nero, mergulhado em sangue e na
luxúria da carne. Ora me via numa alucinação o amado das
multidões, aplaudido, desfilando ao longo (...), ora o amado das
mulheres, atraindo-as arrebatadoramente para fora das suas casas, dos
seus lares, ora o desprezado por todos embora o eleito do bem, por
todos a sacrificar-me. Tudo o que lia, tudo o que ouvia, tudo o que
via — cada ideia vinda de fora, cada (...), cada acontecimento era
o ponto de partida de um sonho. Vinha de um circo e ficava em casa
ousando imaginar-me um palhaço, com luzes em arco à minha volta.
Via soldados passarem na minha mente a falarem com uma visão de mim
próprio, tratando-me por capitão, chefiando, ordenando, vitorioso.
Quando lia algo acerca de aventureiros imediatamente me convertia
neles, por completo. Quando lia algo acerca de criminosos, morria por
cometer crimes até me apavorar com o meu desarranjo mental. Conforme
as coisas que via, ou ouvia, ou lia, vivia em todas as classes
sociais, em todas as idades, em todas as épocas, passava através de
todos os tempos, ultrapassava todas as dificuldades, era mártir,
vitorioso de mais de um milhão de maneiras.
Mas
o erótico, o místico, (...) — todos estes sonhos eram rios
tributários que desaguavam num vasto eu — ou seja, eram todos
parte de um vasto eu - o foco central de todos estes sonhos era a
exaltação da minha personalidade.
Fernando
Pessoa - Manuscrito,
original em Inglês (1904-1908)
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