-
Não, senhor Doutor, isto não se faz. Perdoe-me, isto não se faz.
Tinha
razão Dona Plácida. Nenhum cavalheiro chega uma hora mais tarde ao
lugar em que o espera a sua dama. Entrei esbaforido; Virgília tinha
ido embora. Dona Plácida contou-me que ela esperara muito, que se
irritara, que chorara, que jurara votar-me ao desprezo, e outras mais
coisas que a nossa caseira dizia com lágrimas na voz, pedindo-me que
não desamparasse Iaiá, que era ser muito injusto com uma moça que
me sacrificaria tudo. Expliquei-lhe então que um equívoco... E não
era; cuido que foi simples distração. Um dito, uma conversa, uma
anedota, qualquer coisa; simples distração.
Coitada
de Dona Plácida! Estava aflita deveras. Andava de um lado para
outro, abanando a cabeça, suspirando com estrépito, espiando pela
rótula. Coitada de Dona Plácida! Com que arte conchegava as roupas,
bafejava as faces, acalentava as manhas do nosso amor! que imaginação
fértil em tornar as horas mais aprazíveis e breves! Flores, doces,
- os bons doces de outros dias, - e muito riso, muito afago, um riso
e um afago que cresciam com o tempo, como se ela quisesse fixar a
nossa aventura; ou restituir-lhe a primeira flor. Nada esquecia a
nossa confidente e caseira; nada, nem a mentira, porque a um e outro
referia suspiros e saudades que não presenciara; nada, nem a
calúnia, porque uma vez chegou a atribuir-me uma paixão nova. -
Você sabe que não posso gostar de outra mulher, foi a minha
resposta, quando Virgília me falou em semelhante coisa. E esta só
palavra, sem nenhum protesto ou admoestação, dissipou o aleive de
Dona Plácida, que ficou triste.
-
Está bem, disse-lhe eu, depois de um quarto de hora; Virgília há
de reconhecer que não tive culpa nenhuma... Quer você levar-lhe uma
carta agora mesmo?
-
Ela há de estar bem triste, coitadinha! Olhe, eu não desejo a morte
de ninguém; mas, se o senhor Doutor algum dia chegar a casar com
Iaiá, então sim, é que há de ver o anjo que ela é!
Lembra-me
que desviei o rosto e baixei os olhos ao chão. Recomendo este gesto
às pessoas que não tiverem uma palavra pronta para responder, ou
ainda as que recearem encarar a pupila de outros olhos. Em tais
casos, alguns preferem recitar uma oitava dos Lusíadas, outros
adotam o recurso de assobiar a Norma; eu atenho-me ao gesto
indicado; é mais simples, exige menos esforço.
Três
dias depois, estava tudo explicado. Suponho que Virgília ficou um
pouco admirada, quando lhe pedi desculpa das lágrimas que derramara
naquela triste ocasião. Nem me lembra se interiormente as atribuí a
Dona Plácida. Com efeito, podia acontecer que Dona Plácida
chorasse, ao vê-la desapontada, e, por um fenômeno da visão, as
lágrimas que tinha nos próprios olhos lhe parecessem cair dos olhos
de Virgília. Fosse como fosse, tudo estava explicado, mas não
perdoado, e menos ainda esquecido. Virgília dizia-me uma porção de
coisas duras, ameaçava-me com a separação, enfim louvava o marido.
Esse sim, era um homem digno, muito superior a mim, delicado, um
primor de cortesia e afeição; é o que ela dizia, enquanto eu,
sentado, com os braços fincados nos joelhos, olhava para o chão,
onde uma mosca arrastava uma formiga que lhe mordia o pé. Pobre
mosca! pobre formiga!
-
Mas você não diz nada, nada? perguntou Virgília, parando diante de
mim.
-
Que hei de dizer? Já expliquei tudo; você teima em zangar-se; que
hei de dizer?
-
Sabe o que me parece? Parece-me que você está enfastiada, que se
aborrece, que quer acabar...
-
Justamente!
Foi
dali pôr o chapéu, com a mão trêmula, raivosa... -Adeus, Dona
Plácida, bradou ela para dentro. Depois foi até a porta, correu o
fecho, ia sair; agarrei-a pela cintura. -Está bom, está bom,
disse-lhe. Virgília ainda forcejou por sair. Eu retive-a, pedi-lhe
que ficasse, que esquecesse; ela afastou-se da porta e foi cair no
canapé. Sentei-me ao pé dela, disse-lhe muitas coisas meigas,
outras humildes, outras graciosas. Não afirmo se os nossos lábios
chegaram à distância de um fio de cambraia ou ainda menos; é
matéria controversa. Lembra-me, sim, que na agitação caiu um
brinco de Virgília, que eu inclinei-me a apanhá-lo, e que a mosca
de há pouco trepou ao brinco, levando sempre a formiga no pé. Então
eu, com a delicadeza nativa de um homem do nosso século, pus na
palma da mão aquele casal de mortificados; calculei toda a distância
que ia da minha mão ao planeta Saturno, e perguntei a mim mesmo que
interesse podia haver num episódio tão mofino. Se concluis daí que
eu era um bárbaro, enganas-te, porque eu pedi um grampo a Virgília,
a fim de separar os dois insetos; mas a mosca farejou a minha
intenção, abriu as asas e foi-se embora. Pobre mosca! pobre
formiga! E Deus viu que isto era bom, como se diz na Escritura.
Machado
de Assis, in Memórias póstumas de Brás Cubas
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