3
Faltava
um quilômetro para chegar na casa, quando senti um problema no
carro. Parei. Conferi tudo, nada. O sacolejo que eu tinha sentido era
meu próprio coração batendo do lado de dentro, louco para sair.
Lembrei
(maldita memória!) que Propp tinha um conselho para ocasiões em que
o herói se encontra numa situação como esta. Mas não consegui
lembrar do conselho, maldito Propp, o tratamento estava começando
a fazer efeito.
Engoli,
mandando meu coração voltar para as profundezas donde tinha
emergido, que lugar de coração é lá embaixo.
Fiz
a curva para entrar no caminho que levava até a porta da frente da
casa.
Não
gostei do que vislumbrei. A casa, completamente às escuras. Um
pedaço de treva mais escura contra a treva ligeiramente mais azul,
depois da passagem de um dos relâmpagos tardios da tempestade que se
afastava.
— A
tempestade apagou a luz, pensei.
Mas
cadê aquela multidão de carros estacionados em frente?
Apagou
a luz e todo mundo fugiu para suas casas, me reconfortei. Ainda bem
que o professor Propp sempre me alertou, a lógica não passa de uma
média estatística, uma probabilidade: não era provável que eu
estivesse nesta festa, que passasse por Norma e quase não a visse,
que recebesse aquele telefonema, e saísse, e chovesse, e não
tivesse fósforos, e eu voltasse, não era provável que eu saísse
do carro, fosse até a porta e batesse.
Bati
uma vez. Esperei. Na orelha esquerda, nada. Na direita, nada.
Mas
será possível que não sobrou ninguém? Alguém deve ter
ficado.
Bati
de novo. A chuva voltou a cair imediatamente, como se quisesse levar
aquela casa a nocaute no segundo round, meu coração batia, punch,
jab, cross, direto.
Bati
de novo. E de novo. Até que ouvi aquela voz maravilhosa de um trinco
se abrindo numa porta que você quer abrir.
O
velho criado pôs a cabeça na fresta da porta entreaberta.
— Está
perdido, cavalheiro?
— Não
lembra de mim? Acabo de sair daqui.
— Perdão,
senhor?
— Eu
acabo de sair da festa. Mas voltei.
— Que
festa?
— A
festa que estava havendo aí quando eu saí.
— Mas,
senhor, a festa vai ser amanhã à noite.
Nessa
hora, um relâmpago estralou como um ovo que cai na frigideira.
Fiquei ali, anulado, esperando o trovão passar e ir fazer barulho lá
na puta que o pariu.
O
criado me trouxe de volta à vida:
— Mas
se o senhor quiser, está chovendo tanto, as estradas estão
perigosas, se o senhor quiser passar a noite aqui, tenho certeza que
meu patrão terá o maior prazer em hospedá-lo, senhor?
Disse
meu nome e entrei, tirando o casaco molhado.
A
casa estava completamente às escuras.
— Deixe-me
acender alguma luz, o criado ouviu meus pensamentos.
Fiquei
ali, no escuro, aquela vergonha de perguntar o óbvio.
Uma
luz se fez. Outra. Velas acendiam velas. Candelabros arreganhavam as
dentaduras pela sala. Nada. Nenhum sinal de festa, havida ou por
haver.
Segurei.
— Muita
gente na festa amanhã?, perguntei.
— Ah,
senhor, isso ninguém pode dizer.
Enquanto
o criado acendia luzes e mais luzes, dei um passeio pela sala. Estava
tudo lá, a poltrona-hipopótamo, a cabeça de javali na parede, a
mesa, o piano. Me aproximei. Sobre o piano, as fotos de gente cujas
caras não me diziam nada.
E,
de repente, AQUILO!
Pensei
que já tinha visto tudo, mas aquilo tinha passado dos
limites.
Era
um escândalo, um insulto à realidade, à santíssima lógica das
coisas, e eu explodi:
— Mas
o que é isso?, gritei, agarrando a foto com uma mão e com a outra o
pescoço do criado.
— Isso
o quê?, meu senhor?
— Esta
foto.
— É
apenas a foto de uma festa.
— Quando
foi essa festa?
— Não
sei, meu senhor.
Larguei
o criado, que se afastou alisando o pescoço.
Olhei
bem para a foto, à luz de todos os candelabros.
Não
havia a menor dúvida. Era a foto que tinha sido tirada na
festa, da qual eu tinha acabado de sair e, agora, não existia mais.
— Quer
comer alguma coisa antes de subir a seus aposentos, senhor?
Nem
ouvi a pergunta. Fiquei ali, estarrecido diante daquela foto.
Só
que olhei um pouco mais atentamente. E descobri. Norma. Norma
está nesta foto. E eu não estou.
A
vertigem subiu pelas minhas pernas como uma câimbra.
Eu
estava certo. Não podia mais haver engano. A verdade me atingiu no
meio da testa. TUDO TINHA MUDADO.
4
Quanto
tempo dormi na cama onde o criado praticamente me jogou, depois do
meu choque com a foto, depois que minha consciência colidiu com
aquela imagem, como um avião se choca contra uma montanha?
Voltei
a mim dentro da noite total. O quarto, treva pura.
Mais
treva não seria, se eu tivesse ficado cego.
E
daí comecei a ouvir aquele som, uma coisa doce vinda de algum lugar
e de toda parte ao mesmo tempo, uma voz, sim, era uma voz, uma
voz de mulher, em algum lugar no espaço e no tempo, uma mulher
cantava, e coisas além do meu entendimento queriam que eu estivesse
ali, escutando, como se ouvir aquela voz pudesse ser a razão de ser
de toda uma vida, aquela voz doce que parecia iluminar a meia-noite
com todas as vias lácteas de que o céu é capaz.
Paulo
Leminski, in Agora é que são elas
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