segunda-feira, 13 de maio de 2019

A fulgurante República Guarani

Quase todos os dias, num obstinado exame de consciência, Nando procurava ver como perdera o vácuo interior que antigamente a meditação enchia como a água enche uma cisterna vazia.
Lembrava-se do início de tudo, que tinha sido o seu primeiro encontro com o casal de ingleses. Estava também no ossuário, pela manhã, meditando, perdido como então sabia se perder na visão do juízo e esperando como sempre captar a música que um dia ouviria. Estremeceu ao reboar pela cripta uma voz:
Animula vagula, blandula!
Por tolo que lhe parecesse isto agora, o fato é que ficara um momento atordoado com o verso ímpio de Adriano se desdobrando em ecos cavernosos ao seu redor. Depois o riso falso e sincopado de Hosana:
Assustei-vos, ó timorato padre Nando?
Nando se limitou a dar de ombros, ocultando a irritação.
Confessa, confessa logo, Nandinho. Você pensou que fosse uma caveira lamentando a existência passada na ilusão de que valia a pena servir uma pobre alminha vágula e brândula.
O que é que você quer aqui, Hosana?
Não vim interromper sem motivo tua pia meditação, ó futuro esqueleto. Detesto este lugar imundo. Vim a mando do barbaças, que desejava saber onde se encontrava a menina dos seus olhos, Nando, o falso missionário.
D. Anselmo quer falar comigo? — disse Nando.
Sempre. Principalmente agora, que pretende espremer trabalho de você. No seu lugar, Nando, eu já estava no meio da mulherada índia. Quem me dera que o velho Anselmo me mandasse para lá.
Não há de ser sobre isso que ele quer me falar. Ainda ontem tornamos a conversar.
Chegou gente para visitar o mosteiro e ninguém te encontrava. Aqui o Hosana desconfiou logo que Nando devia estar polindo os ossos da fradaria para o instante do despertar no seio de Abraão. Ui! que bafio de eternidade.
Então, vamos embora que eu tenho de trancar a porta — disse Nando.
Você devia deixar a porta sempre escancarada para arejar esse hálito faraônico — disse Hosana. — Deixa isso aberto. Traz as visitas para cá também.
Você sabe que não pode — disse Nando.
Os ingleses que estão te esperando lá fora me disseram que vinham ao ossuário.
Então pediram permissão expressa a d. Anselmo — disse Nando.
Você devia impor condições — disse Hosana. — Já que é você o guia e introdutor diplomático podia ao menos exigir autoridade para trazer aqui quem quisesse ver as múmias.
Acontece que eu estou de pleno acordo com d. Anselmo. Isto é um lugar santo. Para que trazer turistas analfabetos que na melhor das hipóteses apreciarão isto tanto quanto você?
Deixa de inocência, Nando. D. Anselmo pouco está ligando para a santidade dessa cripta fedorenta. Ele quer é evitar um escândalo sobre o túnel.
Mais um pedaço de corredor aberto na pedra e a subida que ia dar no claustro revestido de azulejos azuis. Nando procurou Teresa tirando a sandália. A ordem de fundar a Ordem. Depois o pleno ar livre do pátio, o sol encharcando a branca fachada quinhentista. Outro dia enjoado e lindo, pensou Nando sentindo o sol escorrer feito melado pelos muros, lambuzando tudo. O céu azul como uma gamela de louça das índias emborcada em cima do mundo. Coqueiros de palmas bordadas pelas rendeiras, tronco cinzelado por santeiros.
Lá estão os ingleses — disse Hosana vendo o casal ao longe no pátio. — Ela até que é um quitute. Ruiva.
E Nando tinha tido a primeira conversa com os que seriam tão amigos seus, ele chamado Leslie e ela Winifred. Leslie tinha vindo como jornalista mas acabava de conseguir aprovação para permanecer mais tempo e escrever um livro sobre o Brasil, principalmente sobre o Nordeste.
Principalmente sobre o Nordeste e principalmente sobre o papel que desempenharam os holandeses no Nordeste — disse, rindo, a mulher, Winifred.
Winifred gosta de implicar comigo — disse Leslie. — Como minha mãe é holandesa, ela acha que estou querendo justificar os antepassados. Mas vou apenas tocar nos holandeses em busca do Nordeste atual. E estou começando a achar que antes de botar mãos à obra eu devia conhecer melhor o Brasil em geral. Tenho conversado com muita gente para poder formar um roteiro que me dê uma base mínima.
Cuidado, cuidado — disse Nando. — Em geral os estrangeiros estudiosos do Brasil vão ao Rio, a São Paulo, às cidades barrocas de Minas, à Bahia, alguns se arriscam até o rio Amazonas e...
E pelo seu tom não é nada disto que deviam fazer — riu Winifred.
Qual é o melhor caminho para se formar uma ideia deste gigante de país?
disse Leslie. — Eu por mim — disse Nando — acho que para se pegar o espírito do Brasil e as raízes de sua vocação no mundo o roteiro seria outro. Pouquíssimos brasileiros o fazem e daí a confusão em que vivemos. Eu considero a ida ao centro do Brasil, onde vivem os índios em estado selvagem, mais importante, muito mais importante do que conhecer o Rio ou São Paulo. E considero uma visita à zona das Missões, no Rio Grande do Sul, mais importante do que visitar Olinda, Bahia, Ouro Preto. Vejam bem — continuou Nando concentrado —, é só no Brasil que ainda existem, tão perto das grandes cidades, homens mais em contato com Deus do que com a história, isto é, com o mundo da razão e do tempo. Entre eles a aventura do homem na terra poderia começar de novo. Quanto às Missões, às ruínas dos Sete Povos, elas são os restos de uma experiência maior do que qualquer das utopias abstratas já escritas. Ali os jesuítas tentaram recomeçar o mundo com os índios guaranis.
O que é que eles fizeram? — disse Winifred.
Uma República cristã e comunista que durou século e meio, minha senhora. Incrível a displicência de historiadores diante da maior experiência social que se fez sem dúvida na América e que possivelmente foi a maior do mundo desde o Império Romano — continuou Nando.
Realmente eu nunca tinha ouvido...
Como ouvir, minha senhora, se ninguém diz nada? Hoje só restam ruínas, dignas ruínas, mas ali se provou, durante cento e cinquenta anos, que com índios se poderia retomar, refazer o império sem fim e criar na América uma República teocrática e comunista, na base do cristianismo dos Atos dos Apóstolos. Com seres novinhos ainda da Criação dava-se o salto definitivo para uma nova sociedade mundial.
Fantástico — disse Leslie, e Nando perguntou a si mesmo se o inglês achava fantástico o que ele narrava ou fantástico ele próprio, narrando tais coisas.
Fantástico o que acontece desde então — disse Nando. — Espanha e Portugal destroem a fulgurante República Guarani. A ideia comunista, fundamental no homem, é torcida e recriada no século seguinte pelo Manifesto Comunista. Para sempre a Igreja perde a primazia. E, no entanto, o que se sabe hoje desse instante crucial da história humana, dessa tragédia nos campos e florestas do sul da América do Sul? Nada. Umas vinte linhas em Toynbee, volumes oito e nove. Fantástico, literalmente fantástico. Isto, minha senhora, no historiador que reduziu as civilizações a mero adubo das religiões. Quando menciona em livro oceânico a grande experiência jesuíta de criar simultaneamente o adubo e a flor, o estrume e a espiga, despacha tudo em vinte linhas desgarradas.
Antonio Callado, in Quarup

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