quarta-feira, 15 de maio de 2019

A descoberta da ignorância

Se, por exemplo, um camponês espanhol tivesse adormecido no ano 1000 e despertado quinhentos anos depois, ao som dos marinheiros de Colombo a bordo das caravelas Niña, Pinta e Santa Maria, o mundo lhe pareceria bastante familiar. Apesar das muitas mudanças na tecnologia, nos costumes e nas fronteiras políticas, esse viajante da Idade Média teria se sentido em casa. Mas se um dos marinheiros de Colombo tivesse caído em letargia similar e despertado ao toque de um iPhone do século XXI, ele se encontraria em um mundo estranho, para além de sua compreensão. “Estou no Céu?”, ele poderia muito bem se perguntar, “Ou, talvez, no Inferno?”
Os últimos quinhentos anos testemunharam um crescimento fenomenal e sem precedentes no poderio humano. No ano 1500, havia cerca de 500 milhões de Homo sapiens em todo o mundo. Hoje, há 7 bilhões. Estima-se que o valor total dos bens e serviços produzidos pela humanidade no ano 1500 era 250 bilhões de dólares. Hoje, o valor de um ano de produção humana é aproximadamente 60 trilhões de dólares. Em 1500, a humanidade consumia por volta de 13 trilhões de calorias de energia por dia. Hoje, consumimos 1,5 quatrilhão de calorias por dia. (Preste atenção nesses números: a população humana aumentou 14 vezes; a produção, 240 vezes; e o consumo de energia, 115 vezes.)
Suponha que um navio de batalha moderno fosse transportado de volta à época de Colombo. Em questão de segundos, poderia destruir a Niña, a Pinta e a Santa Maria e em seguida afundar as esquadras de cada uma das grandes potências mundiais da época sem sofrer um arranhão sequer. Cinco navios de carga modernos poderiam levar a bordo o carregamento das frotas mercantes do mundo inteiro. Um computador moderno poderia facilmente armazenar cada palavra e número em cada códice e pergaminho de cada biblioteca medieval com espaço de sobra. Qualquer grande banco de hoje tem mais dinheiro do que todos os reinos do mundo pré-moderno reunidos.
Em 1500, poucas cidades tinham mais de 100 mil habitantes. A maioria das edificações eram construídas com barro, madeira e palha; um edifício de três andares era um arranha-céu. As ruas eram caminhos de terra cheios de sulcos, poeirentos no verão e lamacentos no inverno, trilhados por pedestres, cavalos, cabras, galinhas e umas poucas carroças. Os ruídos urbanos mais comuns eram vozes de humanos e de animais, junto com o barulho ocasional de uma serra ou de um martelo. Quando o sol se punha, a cidade ficava um breu, com uma ou outra vela ou tocha tremeluzindo na escuridão. Se um habitante de uma dessas cidades pudesse visitar São Paulo, Nova York ou Mumbai hoje em dia, o que pensaria?
Antes do século XVI, nenhum humano havia circum-navegado a Terra. Isso mudou em 1522, quando a expedição de Magalhães regressou à Espanha após uma viagem de 72 mil quilômetros. Levou três anos e custou a vida de quase todos os membros da tripulação, Magalhães incluído. Em 1873, Júlio Verne imaginou que Phileas Fogg, um rico aventureiro britânico, pudesse dar a volta ao mundo em oitenta dias. Hoje, qualquer pessoa de classe média pode circum-navegar a Terra de maneira fácil e segura em apenas 48 horas.
Em 1500, os humanos estavam confinados à superfície da Terra. Eles podiam construir torres e escalar montanhas, mas o céu era reservado para pássaros, anjos e deidades. Em 20 de julho de 1969, os humanos aterrissaram na Lua. Essa foi não só uma conquista histórica como também um feito evolutivo e até mesmo cósmico. Durante os 4 bilhões de anos anteriores de evolução, nenhum organismo havia conseguido sequer sair da atmosfera terrestre, e certamente nenhum deixou uma pegada ou marca de tentáculo na Lua.
Durante a maior parte da história, os humanos não sabiam nada sobre 99,99% dos organismos do planeta – em especial, os micro-organismos. Não que eles não fossem do nosso interesse. Cada um de nós carrega dentro de si bilhões de criaturas unicelulares, e não só como caronas. Elas são nossas melhores amigas e nossas piores inimigas. Algumas digerem nossos alimentos e limpam nossos intestinos, enquanto outras causam doenças e epidemias. Mas foi só em 1674 que um olho humano viu um micro-organismo pela primeira vez, quando Anton van Leeuwenhoek deu uma espiada através de seu microscópio caseiro e ficou impressionado ao ver um mundo inteiro de criaturas minúsculas dando voltas em uma gota d’água. Durante os 300 anos seguintes, os humanos se familiarizaram com uma enorme quantidade de espécies microscópicas. Conseguimos vencer a maioria das doenças contagiosas mais fatais que elas causam e usamos micro-organismos a serviço da medicina e da indústria. Hoje, projetamos bactérias para produzir medicamentos, fabricar biocombustível e matar parasitas.
Mas o momento mais notável e definidor dos últimos 500 anos ocorreu às 5h29m45s da manhã de 16 de julho de 1945. Naquele segundo exato, cientistas norte-americanos detonaram a primeira bomba atômica em Alamogordo, Novo México. Daquele ponto em diante, a humanidade teve a capacidade não só de mudar o curso da história como também de colocar um fim nela. O processo histórico que levou a Alamogordo e à Lua é conhecido como Revolução Científica. Durante essa revolução, a humanidade adquiriu novas capacidades gigantescas, investindo recursos em pesquisa científica. É uma revolução porque, até por volta de 1500, os humanos do mundo inteiro duvidavam de sua aptidão para adquirir novas capacidades médicas, militares e econômicas. Embora o governo e os patrocinadores destinassem fundos à educação e a bolsas de pesquisa, o objetivo era, em geral, preservar as capacidades existentes, em vez de adquirir novas. O típico governante pré-moderno dava dinheiro para padres, filósofos e poetas na esperança de que eles legitimassem seu poder e mantivessem a ordem social. Ele não esperava que eles descobrissem novos medicamentos, inventassem novas armas ou estimulassem o crescimento econômico.
Ao longo dos últimos cinco séculos, os humanos passaram a acreditar que poderiam aumentar suas capacidades se investissem em pesquisa científica. Isso não era uma fé cega – foi, repetidas vezes, comprovado empiricamente. Quanto mais provas surgiam, mais recursos as pessoas ricas e os governos estavam dispostos a destinar à ciência. Jamais teríamos sido capazes de caminhar na Lua, projetar micro-organismos e dividir o átomo sem tais investimentos. O governo dos Estados Unidos, por exemplo, destinou, nas últimas décadas, bilhões de dólares para o estudo da física nuclear. O conhecimento produzido por essas pesquisas tornou possível a construção de usinas nucleares, que fornecem eletricidade barata para as indústrias norte-americanas, que pagam impostos para o governo dos Estados Unidos, que usa parte desses impostos para financiar mais pesquisas em física nuclear.
Por que os humanos modernos desenvolveram uma crença cada vez maior em sua aptidão para adquirir novas capacidades por meio de pesquisas? O que construiu a relação entre ciência, política e economia? Este capítulo examina a natureza singular da ciência moderna a fim de fornecer parte da resposta. Os dois capítulos seguintes analisam a formação da aliança entre a ciência, os impérios europeus e a economia do capitalismo.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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