quinta-feira, 18 de abril de 2019

Os deuses reclinados

Por toda a parte as estátuas de Buda, de Lorde Buda... As estátuas severas, verticais, carcomidas, com um dourado de resplendor animal, desfeitas como se o ar as desgastasse... Brotam-lhes das faces, das dobras da túnica, dos cotovelos, umbigos, boca e sorriso, pequenas manchas: fungos, porosidades, vestígios de excrementos da selva... Ou então as que jazem, as imensas que jazem, as estátuas de quarenta metros de pedra, de granito arenoso, pálidas, estendidas entre as frondes sussurrantes, inesperadas, surgindo de algum recanto da selva, de alguma circundante plataforma... Adormecidas ou não ficam ali cem anos, mil anos, mil vezes mil anos... Mas são suaves, com uma conhecida ambiguidade extraterrena, querendo ficar e partir... E esse sorriso de pedra suavíssima, essa majestade imponderável feita no entanto de pedra dura, perpétua, para quem sorriem, para mais quem, sobre a terra sangrenta?... Passaram as camponesas que fugiam, os homens do incêndio, os guerreiros mascarados, os falsos sacerdotes, os turistas devoradores... E a estátua manteve-se em seu lugar, a pedra imensa com joelhos, com dobras na túnica de pedra, com o olhar perdido e não obstante vivo, inteiramente inumana e de certa forma também humana, de certa forma ou em alguma contradição estatuária, sendo e não sendo deus, sendo e não sendo pedra, sob o grasnido das aves negras, entre o esvoaçar das aves vermelhas, das aves da selva... De certo modo pensamos nos terríveis Cristos espanhóis que herdamos com chagas e tudo, com pústulas e tudo, com cicatrizes e tudo, com esse cheiro de vela, de umidade, de ambiente fechado que têm as igrejas... Esses Cristos também vacilaram entre serem homens ou deuses... Para fazê-los homens, para aproximá-los mais dos que sofrem, das parturientes e dos decapitados, dos paralíticos e dos avarentos, da gente de igreja e da que rodeia as igrejas, para fazê-los humanos, os escultores dotaram-nos de chagas horripilantes até que tudo aquilo se converteu na religião do suplício, no peca e sofre, no não peca e sofre, no vive e sofre, sem que nenhuma escapatória te livrasse... Aqui não, aqui a paz chegou até à pedra... Os escultores se rebelaram contra os cânones da dor e estes Budas colossais, com pés de deuses gigantes, têm no rosto um sorriso de pedra que é sossegadamente humano, sem tanto sofrimento... E deles emana um cheiro, não de casa morta, não de sacristia e teias de aranha, mas de espaço vegetal, de lufadas que logo caem tempestuosas com penas, folhas, pólen da selva infinita.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

Nenhum comentário:

Postar um comentário