Aurorava.
O sol dava as cinco. As sombras, neblinubladas, iam espertando na
ensonação geral. No topo das árvores, frutificavam os pássaros.
Toda madrugada confirma: nada, neste mundo, acontece num súbito. A
claridade já muito espontava, como lagarta luzinhenta roendo o miolo
da escuridão. As criaturas se vão recortando sob o fundo da
inexistência. Neste tempo uterino o mundo é interino. O céu se vai
azulando, permeolhável. Abril: sim, deve ser demasiado abril. Agora,
que a aurora já entrou neste escrito, entremos nós no assunto.
Nesta
manhã tão recente, uma criança vem caminhando. Quem é este menino
que faz do mundo outro menino? Deixemos seu nome, esqueçamos seu
lugar. Dele se engrandece apenas a avó: que o miúdo tem intimidades
com o mundo de lá. De quando em quando, a criança lhe estende a
faca e pede:
— Me
corte, avó!
Para
sonhar o menino tinha que sangrar. A avó lhe cedia o jeito,
habituada à lâmina como outras mães se acostumam ao pente. O
sangue espontava e o mundo presenciava o futuro, tivesse a barriga
prenhe do tempo encostada em seu ouvido. Ditos da velha, quem se fia?
Confirmado
é que o menino segue por aquela manhã. Seus pés escolhem as
pedras, nem precisam dos olhos para se guiarem. O miúdo passa no
municipal edifício, o único da vila. Seu rosto se ergue para olhar
a bandeira. O pano dança dentro do céu, como luz que se enruga. Um
velho coqueiro sem copa serve de mastro. As cores do pano estão tão
rasgadas que nada nele arco-irisca. Os olhos do miúdo pirilampejam
de encontro à luz: é quando o golpe lhe tombou. Deflagra-se-lhe a
cabeça, extracraniana. A voz autoritarista do soldado lhe desce:
— Você
não viu a bandeira?
Tombado
no carreiro, sobre as pedras que antes evitava, o menino olha as
cimeiras paragens. Um coqueiro lhe traz lembranças litorais. Onde há
uma palmeira sempre deve ser inventado um mar, eternas ondas
morrendo. Agora, rebatido no repentino solo, o menino estranha ver
tanto céu. A pergunta lhe vem pastosa: porquê o chão, tão debaixo
dele? Outro golpe, a bota espessa lhe levando o rosto ao encosto da
terra. Fica assim, pisado, sem outra visão que a da areia vermelha.
Seu pensamento se desarruma. Palmeira, palma do mar, onde o azul
espeta suas raízes. Pergunta-se, com as devidas vénias: e se
içassem não a bandeira mas a terra?
Ceda-se
o turno ao mundo. A voz lhe chega, baixada como um chicote:
— Você,
miúdo, não aprendeu respeitos com a bandeira?
Sente
o sangue escorrendo, a bota do soldado ainda lhe dói uma última
vez. Como pode saber ele os procedimentos exigidos pelo vigilante?
Mas o soldado é totalmente militar: está só cumprindo ignorâncias,
jurista de chumbo incapaz de distinguir um fora-da-lei de um da
lei-de-fora. E o menino vai vislumbrando um outro caminho, tão sem
pedrinhas que os pés nem tinham que escolher. Um caminho que
dispensava toda bandeira. À medida que o soldado desfere mais
violência, a bandeira parece perder as cores, a paisagem em redor
esfria e a luz tomba de joelhos. É, então.
Sucede
coisa que nem nunca nem jamais: a bandeira, em inesperado impulso, se
ergue em ave, nuamente atravessando nuvens. Fluvial, o pano migra
para outros céus. No momento, se vê o quanto as bandeiras roubam
aos azuis celestiais.
Mas
o espanto apenas se estreou, aquilo era apenas o presságio. Porque,
no sequente instante, a palmeira se despenha das suas alturas
fulminando o soldado, em clarão de rasgar o mundo em dois. Sobem
confusas poeiras, mas depois a palmeira se esclarece, tombada em
assombro, junto aos corpos.
A
árvore estava já morta, ainda houve o dito. Poucos criam. A crença
estava com a avó, sua outra versão: o tronco se desmanchara,
líquido, devido à morte daquela criança. Vingança contra as
injustiças praticadas contra a vida. De se acreditar estavam apenas
aquelas duas mortes, uma contra a outra. A palmeira sumiu mas para
sempre ficara a sua ausência. Quem passe por aquele lugar escuta
ainda o murmúrio das suas folhagens. A palmeira que não está
conforta a sombra de um menino, sombra que persiste no sol de
qualquer hora.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
como retirar trechos de discurso direto desse conto
ResponderExcluirNão entendi
ResponderExcluir