O
filósofo costumava falar com seu cachorro. Os dois estavam chegando
ao fim da vida ao mesmo tempo e a idade os aproximara ainda mais. O
filósofo não podia mais ler ou escrever, e falar com o cachorro era
a única maneira de desfiar seus pensamentos, pois sua mente
continuava ativa. A família do filósofo não tinha muita paciência
para ouvir suas divagações, enquanto o velho cachorro não tinha
mais nada a fazer senão ficar deitado aos pés do seu dono enquanto
ele falava, falava, falava. O filósofo sabia que o cachorro
provavelmente dormia ao som da sua voz, mas não se importava. Pelo
menos sua voz tinha um destino, dois ouvidos leais, em vez de se
perder no espaço vazio da biblioteca.
Mas
um dia aconteceu o seguinte: o cachorro respondeu.
O
filósofo tinha dito:
— Pensando
bem, a morte é uma dádiva.
E
o cachorro:
— Desenvolve.
O
filósofo olhou em volta. Quem dissera aquilo? Perguntou para o
espaço vazio:
— O
quê?
— “A
morte é uma dádiva.” Desenvolve a tese.
Não
havia dúvida, quem estava falando era o cachorro. O filósofo
hesitou, limpou a garganta, depois disse:
— Bem,
não é exatamente uma tese. É mais um consolo.
— Como
assim? O cachorro falava sem abrir os olhos.
— Você
já pensou — disse o filósofo — se nós vivêssemos para sempre?
Estaríamos obrigados a entender o Universo. As razões da
existência, o sentido da vida, essas coisas. Como são coisas
incompreensíveis, viveríamos com a permanente consciência da nossa
incapacidade, da nossa insuficiência mental. Do nosso fracasso.
Seria uma angústia eterna.
— E
a morte é melhor do que isso?
— A
morte nos exime. Somos visitantes no Universo. Suas grandes questões
não nos dizem respeito, pois estamos aqui só de passagem. A
finitude é a nossa desculpa para não entender, para não precisar
entender. A dádiva da morte é nos tornar iguais a vocês.
— Nós
quem?
— Os
bichos. Vocês têm cosmogonias? Especulações metafísicas? Algum
tipo de inquietação existencial?
— Eu,
não. Não posso falar pelos outros. Mas vem cá...
— O
quê?
— Não
é justamente o fato de vocês serem mortais, finitos e passageiros
que dá origem a todas as cosmogonias, a toda metafísica? A morte
não é a mãe da filosofia?
— A
recusa da morte é a mãe da filosofia. A ideia de deixar de existir
é profundamente repugnante para o nosso amor-próprio. Aceitando a
morte como um consolo, como um álibi, eu também estou me livrando
desta absurda pretensão do meu ego, que é a de que eu não posso
simplesmente acabar. Logo eu, de quem eu gosto tanto. Por isso se
inventam religiões, e mil e uma maneiras de a vida continuar, nem
que se volte como um cachorro.
— Epa.
— Foi
só um exemplo. Mas eu renuncio à filosofia, renuncio a toda
especulação sobre o mistério de ser, e aceito o meu fim. Estou
pronto a pensar no Universo e na morte como um bicho.
— Mas
eu nunca penso no Universo ou na morte.
— Exatamente.
Porque você não sabe que vai morrer.
— Fiquei
sabendo agora. Obrigado, viu?
— É
isso que eu quero. Essa sábia ignorância, essa burrice caridosa...
Podemos até trocar de lugar, se você concordar. Lhe dou todas as
minhas especulações, minhas teses, meu ego e minha angústia, em
troca da sua paz.
— Acho
que sua família não aprovaria. E não sei se eu ficaria bem de
cardigã.
Nisso
a neta do filósofo entrou na biblioteca e tentou acordá-lo,
sacudindo-o e dizendo “Vô, vô, o lanche”, mas não conseguiu, e
foi correndo chamar a mãe.
O
cachorro também continuou com os olhos fechados.
Luís
Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo
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