segunda-feira, 1 de abril de 2019

O filósofo e seu cachorro

O filósofo costumava falar com seu cachorro. Os dois estavam chegando ao fim da vida ao mesmo tempo e a idade os aproximara ainda mais. O filósofo não podia mais ler ou escrever, e falar com o cachorro era a única maneira de desfiar seus pensamentos, pois sua mente continuava ativa. A família do filósofo não tinha muita paciência para ouvir suas divagações, enquanto o velho cachorro não tinha mais nada a fazer senão ficar deitado aos pés do seu dono enquanto ele falava, falava, falava. O filósofo sabia que o cachorro provavelmente dormia ao som da sua voz, mas não se importava. Pelo menos sua voz tinha um destino, dois ouvidos leais, em vez de se perder no espaço vazio da biblioteca.
Mas um dia aconteceu o seguinte: o cachorro respondeu.
O filósofo tinha dito:
Pensando bem, a morte é uma dádiva.
E o cachorro:
Desenvolve.
O filósofo olhou em volta. Quem dissera aquilo? Perguntou para o espaço vazio:
O quê?
— “A morte é uma dádiva.” Desenvolve a tese.
Não havia dúvida, quem estava falando era o cachorro. O filósofo hesitou, limpou a garganta, depois disse:
Bem, não é exatamente uma tese. É mais um consolo.
Como assim? O cachorro falava sem abrir os olhos.
Você já pensou — disse o filósofo — se nós vivêssemos para sempre? Estaríamos obrigados a entender o Universo. As razões da existência, o sentido da vida, essas coisas. Como são coisas incompreensíveis, viveríamos com a permanente consciência da nossa incapacidade, da nossa insuficiência mental. Do nosso fracasso. Seria uma angústia eterna.
E a morte é melhor do que isso?
A morte nos exime. Somos visitantes no Universo. Suas grandes questões não nos dizem respeito, pois estamos aqui só de passagem. A finitude é a nossa desculpa para não entender, para não precisar entender. A dádiva da morte é nos tornar iguais a vocês.
Nós quem?
Os bichos. Vocês têm cosmogonias? Especulações metafísicas? Algum tipo de inquietação existencial?
Eu, não. Não posso falar pelos outros. Mas vem cá...
O quê?
Não é justamente o fato de vocês serem mortais, finitos e passageiros que dá origem a todas as cosmogonias, a toda metafísica? A morte não é a mãe da filosofia?
A recusa da morte é a mãe da filosofia. A ideia de deixar de existir é profundamente repugnante para o nosso amor-próprio. Aceitando a morte como um consolo, como um álibi, eu também estou me livrando desta absurda pretensão do meu ego, que é a de que eu não posso simplesmente acabar. Logo eu, de quem eu gosto tanto. Por isso se inventam religiões, e mil e uma maneiras de a vida continuar, nem que se volte como um cachorro.
Epa.
Foi só um exemplo. Mas eu renuncio à filosofia, renuncio a toda especulação sobre o mistério de ser, e aceito o meu fim. Estou pronto a pensar no Universo e na morte como um bicho.
Mas eu nunca penso no Universo ou na morte.
Exatamente. Porque você não sabe que vai morrer.
Fiquei sabendo agora. Obrigado, viu?
É isso que eu quero. Essa sábia ignorância, essa burrice caridosa... Podemos até trocar de lugar, se você concordar. Lhe dou todas as minhas especulações, minhas teses, meu ego e minha angústia, em troca da sua paz.
Acho que sua família não aprovaria. E não sei se eu ficaria bem de cardigã.
Nisso a neta do filósofo entrou na biblioteca e tentou acordá-lo, sacudindo-o e dizendo “Vô, vô, o lanche”, mas não conseguiu, e foi correndo chamar a mãe.
O cachorro também continuou com os olhos fechados.
Luís Fernando Veríssimo, in Amor veríssimo

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