Eu
ia terminando o jantar quando d. Zizi se sentou, e, como sempre
acontece, mostrou os dentes num sorriso amável e principiou a contar
casos interessantes da sua vida no colégio.
Essas
conversas agradam-me, porque circulam nelas uns tipos curiosos de
freiras e porque os dentes de d. Zizi são brancos. Infelizmente eu
não dispunha de tempo bastante para escutá-la: precisava escrever
umas coisas e por isso havia jantado mal, procurando um assunto,
inutilmente.
A
presença de d. Zizi pôs em fuga umas ideias que eu tentava segurar.
Olhei o relógio. Como eram oito horas, calculei que as freiras se
retirariam de cena ali por volta das onze. Se d. Zizi não se
lembrasse de contar-me a sua viagem a Cambuquira, acontecimento
notável já narrado quatro ou cinco vezes, ainda me seria possível
redigir a coluna magra esboçada vagamente durante o jantar.
Agarrei-me à esperança de que a coluna engrossaria no decorrer da
história e plantei os cotovelos em cima da mesa, resignado, pronto
para receber as freiras.
Vieram:
primeiro a madre superiora, boa mulher, a que prestava no
estabelecimento, mas de ordinário invisível; depois as outras,
medonhas, seres hipócritas odiados pelas alunas. É o que d. Zizi me
diz sempre, e não tenho motivo para duvidar dela.
A
minha excelente vizinha rezou tanto que enjoou as rezas, e, como a
obrigaram a ajoelhar-se no chão em cima de caroços de milho, foge
da igreja como um diabo.
O
arrombamento do cofre de S. José e consequente roubo das moedas que
lá estavam realizou-se por volta das nove horas. Ouvi a façanha com
todas as minudências e aproveitei-a, achei que as meninas tinham
procedido com acerto espoliando o santo.
Animada
por algumas interjeições que reforçaram os movimentos de cabeça
que fiz, d. Zizi atacou a professora de francês, mulher que aborrece
por causa do seu comportamento horrível no dia em que a mocinha
chegou à porta em companhia do namorado. Isto aconteceu pouco mais
ou menos às nove e meia, e quando a professora de francês se
dirigiu ao telefone, dez horas tinham passado, porque houve um grande
espalhafato, a velha ameaçando, a moça defendendo-se, gritando que
ia aos jornais narrar uns casos feios.
D.
Zizi entusiasmava-se com a antiga colega. Uma dor nos cotovelos
obrigou-me a retirar da mesa os braços cansados, que sustentavam a
cabeça cansada. Pensei nos joelhos agudos da minha amiga, nos pobres
joelhos que anos antes se haviam martirizado em cima de caroços de
milho.
— Perfeitamente,
d. Zizi. Continue.
E
d. Zizi continuou até onze horas, exatamente o que eu tinha
previsto. Hábitos pretos enchiam a sala de jantar, mãos brancas e
magras escondiam-se nas mangas largas, olhos parados pregavam-se no
chão, beiços amarelos mexiam-se quase sem vida:
— Louvado
seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
— Para
sempre seja louvado, bocejavam as alunas.
D.
Zizi resmungou isso longamente e nunca se acostumou a resmungar. Fez
caretas às irmãs quando elas davam as costas, abafou níqueis e
pratas do cofre de S. José. Hoje é ímpia, sem alma. Entrará no
inferno sem nenhuma formalidade. E vai meter o filho num colégio de
religiosos.
— É
preciso que ele veja isso de perto. O senhor não acha?
— Perfeitamente,
d. Zizi.
— Se
ficar de fora, pode enganar-se, imaginar coisa diferente. Vou
interná-lo. Não é bom?
— É,
d. Zizi. Boa noite.
Subi
a escada às onze e meia. Felizmente a viagem a Cambuquira não veio.
Mas as ideias necessárias ao pagamento da pensão tinham
desaparecido. Paciência. Em falta de coisa melhor, utilizei o
negócio das freiras e as opiniões de d. Zizi.
Graciliano
Ramos, in Garranchos
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