segunda-feira, 1 de abril de 2019

D. Zizi

Eu ia terminando o jantar quando d. Zizi se sentou, e, como sempre acontece, mostrou os dentes num sorriso amável e principiou a contar casos interessantes da sua vida no colégio.
Essas conversas agradam-me, porque circulam nelas uns tipos curiosos de freiras e porque os dentes de d. Zizi são brancos. Infelizmente eu não dispunha de tempo bastante para escutá-la: precisava escrever umas coisas e por isso havia jantado mal, procurando um assunto, inutilmente.
A presença de d. Zizi pôs em fuga umas ideias que eu tentava segurar. Olhei o relógio. Como eram oito horas, calculei que as freiras se retirariam de cena ali por volta das onze. Se d. Zizi não se lembrasse de contar-me a sua viagem a Cambuquira, acontecimento notável já narrado quatro ou cinco vezes, ainda me seria possível redigir a coluna magra esboçada vagamente durante o jantar. Agarrei-me à esperança de que a coluna engrossaria no decorrer da história e plantei os cotovelos em cima da mesa, resignado, pronto para receber as freiras.
Vieram: primeiro a madre superiora, boa mulher, a que prestava no estabelecimento, mas de ordinário invisível; depois as outras, medonhas, seres hipócritas odiados pelas alunas. É o que d. Zizi me diz sempre, e não tenho motivo para duvidar dela.
A minha excelente vizinha rezou tanto que enjoou as rezas, e, como a obrigaram a ajoelhar-se no chão em cima de caroços de milho, foge da igreja como um diabo.
O arrombamento do cofre de S. José e consequente roubo das moedas que lá estavam realizou-se por volta das nove horas. Ouvi a façanha com todas as minudências e aproveitei-a, achei que as meninas tinham procedido com acerto espoliando o santo.
Animada por algumas interjeições que reforçaram os movimentos de cabeça que fiz, d. Zizi atacou a professora de francês, mulher que aborrece por causa do seu comportamento horrível no dia em que a mocinha chegou à porta em companhia do namorado. Isto aconteceu pouco mais ou menos às nove e meia, e quando a professora de francês se dirigiu ao telefone, dez horas tinham passado, porque houve um grande espalhafato, a velha ameaçando, a moça defendendo-se, gritando que ia aos jornais narrar uns casos feios.
D. Zizi entusiasmava-se com a antiga colega. Uma dor nos cotovelos obrigou-me a retirar da mesa os braços cansados, que sustentavam a cabeça cansada. Pensei nos joelhos agudos da minha amiga, nos pobres joelhos que anos antes se haviam martirizado em cima de caroços de milho.
Perfeitamente, d. Zizi. Continue.
E d. Zizi continuou até onze horas, exatamente o que eu tinha previsto. Hábitos pretos enchiam a sala de jantar, mãos brancas e magras escondiam-se nas mangas largas, olhos parados pregavam-se no chão, beiços amarelos mexiam-se quase sem vida:
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo.
Para sempre seja louvado, bocejavam as alunas.
D. Zizi resmungou isso longamente e nunca se acostumou a resmungar. Fez caretas às irmãs quando elas davam as costas, abafou níqueis e pratas do cofre de S. José. Hoje é ímpia, sem alma. Entrará no inferno sem nenhuma formalidade. E vai meter o filho num colégio de religiosos.
É preciso que ele veja isso de perto. O senhor não acha?
Perfeitamente, d. Zizi.
Se ficar de fora, pode enganar-se, imaginar coisa diferente. Vou interná-lo. Não é bom?
É, d. Zizi. Boa noite.
Subi a escada às onze e meia. Felizmente a viagem a Cambuquira não veio. Mas as ideias necessárias ao pagamento da pensão tinham desaparecido. Paciência. Em falta de coisa melhor, utilizei o negócio das freiras e as opiniões de d. Zizi.
Graciliano Ramos, in Garranchos

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