sábado, 27 de abril de 2019

O enterro do avô Joad

Uma fogueira ardia no fundo da vala, à margem da estrada. Tom tinha feito, com estacas e arame, uma armação de onde pendiam duas panelas em que a água borbulhava furiosamente. De sob as tampas das panelas escapavam rolos de vapor branco. Rosa de Sharon estava ajoelhada no chão, um pouco afastada do calor intenso da fogueira, e tinha uma colher na mão. Ela viu a mãe saindo da tenda, ergueu-se e foi ao encontro dela.
Mãe — disse —, preciso perguntar uma coisa à senhora.
Cê já está com medo outra vez? — inquiriu a mãe. — Queria passar todos os nove meses sem ter um aborrecimento?
Mas... isso não vai fazer mal à criança?
A mãe disse:
Tem um dito assim: “Uma criança que nasce no pesar não terá do que se lamentar.” Não é mesmo, senhora Wilson?
Sim, também já ouvi dizer isso — disse Sairy. — E tem outra frase assim: “Quem com muita alegria nascer, em muita dor vai viver.”
Mas eu estou tremendo tanto por dentro! — disse Rosa de Sharon.
Todos nós estamos — disse a mãe. — Bem, agora vai tomar conta das panelas.
À margem do anel de luz que rodeava a fogueira, os homens se agruparam. Por ferramenta, tinham apenas uma pá e uma picareta. O pai demarcou o lugar — dois metros e meio de comprimento e um de largura. Revezavam-se no trabalho. O pai rasgava a terra com a picareta e tio John jogava-a de lado com a pá. Depois Al pegava na picareta e Tom na pá, e depois vinham Noah e Connie, e assim sucessivamente. E a cova ia ficando mais e mais funda, pois que eles trabalhavam incessante e vigorosamente. A terra voava da cova em uma chuva de torrões. Quando já estava numa cova retangular que lhe vinha até a altura dos ombros, Tom disse:
Mais fundo ainda, pai?
Tem que ser bastante funda. Só um pouco mais. Sai daí agora, Tom. Vai escrever aquele papel que falamos.
Tom içou-se da cova e Noah tomou o lugar dele. Tom foi para junto da mãe, que estava avivando o fogo.
A senhora tem papel branco e caneta, mãe?
A mãe sacudiu vagarosamente a cabeça:
Não. Justamente isso a gente não trouxe... — Lançou um olhar para Sairy. E a pequena senhora foi depressa à tenda e voltou com uma Bíblia e metade de um lápis.
Tome — falou. — Pode tirar a primeira página da Bíblia, que está em branco. — E entregou o livro e o lápis a Tom.
Tom sentou junto ao fogo. Apertou os olhos num gesto de concentração mental e logo começou a escrever, vagarosa e cuidadosamente, desenhando letras bem graúdas. — “Este qui aqui jaz é William James Joad qui morreu di um ataque já muito velho e a família dele enterrou ele aqui purque não tinha dinheiro pro funeral. Ninguém matô ele só qui ele teve um ataque e morreu.”
Mãe, escuta. — E leu vagarosamente o que tinha escrito.
Está bem, até que não soa mal — disse ela. — Mas cê não podia escrever aí alguma coisa da Bíblia, hem? É pra ser um enterro religioso. Procura um pedaço bonito da Bíblia e escreve no papel também.
Sim, mas não pode ser uma coisa comprida, porque não dá. O papel é muito pequeno.
Sairy disse:
Que tal isto: “Que Deus guarde a sua alma”?
Não — disse Tom. — Isso soa como se ele tivesse sido enforcado. Deixe que eu vou ver se copio um pedaço qualquer da Escritura. — Foi virando as páginas, leu, movimentando os lábios, murmurando baixinho. — Aqui tem um pedaço bonito e bem curto — falou, afinal. — “E Lot disse-lhe: Oh, não é assim, Senhor.”
Mas isso não quer dizer coisa nenhuma — disse a mãe. — Já que ocê tá escrevendo, escreve qualquer coisa que tenha sentido.
Sairy disse:
Veja nos Salmos, mais adiante. Nos Salmos sempre se encontra alguma coisa.
Tom foi folheando e lendo os versículos.
Aqui tem um — disse. — É bonito e bem religioso: “Bem-aventurados aqueles cujas iniquidades são perdoadas e cujos pecados são esquecidos.” Que tal?
Este, sim. É bonito mesmo — disse a mãe. — Pode escrever.
Tom copiou o trecho cuidadosamente. A mãe enxaguou e limpou um vidro de conserva; Tom botou nele o papel e atarraxou firmemente a tampa.
Quem sabe o reverendo devia ter escrito isso? — disse.
Não, o reverendo não é parente nosso — opinou a mãe. Ela pegou o vidro e entrou com ele na tenda escura. Abriu um dos pontos em que o lençol estava seguro pelos alfinetes, meteu o vidro entre as mãos frias do morto e tornou a fechar o lençol. Depois voltou para junto da fogueira.
Os homens estavam regressando da cova e suas faces brilhavam de suor.
Pronto — disse o pai. Foi com John, Noah e Al à tenda e voltaram, carregando o comprido embrulho até a beira da cova. O pai pulou para dentro, pegou o embrulho nos braços e depositou-o cuidadosamente no fundo. Tio John estendeu as mãos e ajudou o pai a subir novamente. O pai perguntou:
Como é que vai ser com a avó?
Vou ver ela — disse a mãe. Foi até o colchão e olhou a anciã por um instante. Depois voltou à cova. — Ela está dormindo — disse. — Talvez se aborreça comigo depois, mas não posso acordar ela. Tá muito cansada.
Onde está o pregador? Ele tem que rezar uma coisa qualquer — disse o pai.
Tom respondeu:
Eu vi ele andando aí pela estrada. Mas ele não gosta mais de rezar.
Não gosta de rezar?
Não — disse Tom. — Ele não é mais um pregador, disse. E diss’que não é direito enganar o povo, fazer o papel de pregador, já que ele não é mais. Aposto que fugiu pra que a gente não pudesse pedir a ele que rezasse.
Casy vinha se aproximando em silêncio e ouvira as últimas palavras de Tom.
Não fugi, não — disse. — Quero ajudar vocês, mas não quero tapear ninguém.
O pai disse:
Mas o senhor não podia dizer umas palavras ao menos? Ainda ninguém da nossa família foi enterrado sem que alguém dissesse algumas palavras.
Bem, então eu vou dizer — falou o pregador.
Connie conduziu Rosa de Sharon até a cova. Ela o seguiu com relutância.
Cê tem que vir — disse Connie. — Não fica direito. E termina logo.
A luz da fogueira caía sobre o grupo, destacando-lhes as faces e os olhos e refletindo-se fracamente nas suas vestes escuras. Todos tiraram os chapéus. A luz bailava, saltitante, sobre o grupo.
Casy disse:
Não vou demorar muito tempo. — Baixou a cabeça e os outros seguiram-lhe o exemplo. Casy disse com solenidade:
Este ancião aqui viveu longa vida, ao fim da qual morreu. Não sei se era bondoso ou mau, e isso não importa. Ele viveu, e isto é o principal. E agora está morto, e acabou-se. Uma vez ouvi alguém recitar um poema que dizia assim: “Tudo que vive é sagrado.” Basta pensar um pouco nessas palavras para descobrir que significam muito mais do que aparentam. Não quero rezar por um homem que está morto. Ele cumpriu o seu destino. Está como deve estar. Tem uma tarefa a cumprir, uma tarefa só dele e só há uma maneira de ele conseguir. E nós, nós também temos uma missão a cumprir, mas não sabemos exatamente o que fazer, porque são muitos os caminhos que se abrem diante de nós. E já que tenho que rezar, vou rezar pelas pessoas que não sabem qual o caminho que devem escolher. O avô, aqui, já tem seu caminho. Portanto, cubram-no e deixem que ele cumpra a sua missão. — E Casy ergueu a cabeça.
O pai disse “Amém”. E todos os outros murmuraram: “Amém.” Depois, o pai pegou a pá, encheu-a de terra e deixou-a cair lentamente na cova. Entregou a pá a tio John, e também ele jogou um pouco de terra na cova. A pá passou de mão em mão, até que todos os homens cumpriram a sua obrigação. Cumprida esta tarefa, o pai tomou de novo a pá e foi lançando rapidamente a terra, cobrindo a cova. As mulheres voltaram para junto da fogueira, a fim de tratarem de preparar a comida. Ruthie e Winfield olhavam tudo, absortos.
Ruthie disse solenemente:
O avô agora está aí embaixo.
E Winfield olhou-a com olhos horrorizados. Depois correu até a fogueira, sentou-se no chão e ficou soluçando.
O pai tinha enchido a cova somente até a metade. Parou, afegando de cansaço, e tio John se encarregou de terminar a tarefa. John estava modelando a saliência sobre o túmulo quando Tom interrompeu-o:
Escute, tio John — disse —, se a gente mostrar que isto aqui é um túmulo, vão querer logo abrir ele. É melhor aplainar a terra em cima e espalhar capim sobre ela. É o único jeito.
O pai disse:
Nem pensei nisso. Mas uma cova que nem tem forma de cova não fica direito.
Paciência. É o único jeito — disse Tom. — Senão, eles vão logo desenterrar o avô e então a gente vai passar um mau pedaço por não ter cumprido a lei. E o senhor sabe o que vai acontecer então comigo, não sabe?
É, eu me esqueci disso. — Tirou a pá da mão de tio John e foi aplainando a superfície da cova. — No inverno vai afundar — comentou.
Que é que se vai fazer? — disse Tom. — No inverno a gente já está bem longe. Vamos pisar bem e jogar capim por cima.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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