segunda-feira, 15 de abril de 2019

O colecionador de desaparecimentos

Entre 1997 e 1998, desapareceram nos céus de Angola cinco aviões, com um total de 23 tripulantes, originários da Bielorrússia, Rússia, Moldávia e Ucrânia. A 25 de maio de 2003, um Boeing 727, propriedade da American Airlines, desencaminhou-se do aeroporto de Luanda e nunca mais foi visto. O aparelho estava há 14 meses sem voar.
Daniel Benchimol coleciona histórias de desaparecimentos em Angola. Todo o tipo de desaparecimentos, embora prefira os aéreos. É sempre mais interessante ser arrebatado pelos céus, como Jesus Cristo ou a sua mãe, do que engolido pela terra. Isto, claro, se não nos estivermos a servir de uma linguagem metafórica. Pessoas ou objetos literalmente engolidos pela terra, como parece ter acontecido com o escritor francês Simon-Pierre Mulamba, são, contudo, casos muito raros.
O jornalista classifica os desaparecimentos recorrendo a uma escala de zero a dez. Os cinco aviões desaparecidos nos céus de Angola, por exemplo, foram classificados por Benchimol como desaparecimentos de grau oito. O Boeing 727, como desaparecimento de grau nove; Simon-Pierre Mulamba também.
Mulamba desembarcou em Luanda a vinte de abril de 2003, a convite da Alliance Française, para uma conferência sobre a vida e a obra de Léopold Sédar Senghor. Alto, distinto, sempre com um belíssimo chapéu de feltro, que usava levemente descaído para o lado direito, numa estudada indiferença. Simon-Pierre gostou de Luanda. Aquela era a primeira vez que visitava África. O pai, professor de danças latinas, natural de Ponta Negra, falara-lhe do calor, da umidade, da ameaça das mulheres, mas não o preparara para aquele excesso de vida, o carrossel de emoções, o embriagante tropel de sons e de cheiros. Na segunda noite, logo após a palestra, o escritor aceitou o convite de Elizabela Montez, uma jovem estudante de arquitetura, para tomar um copo num dos mais elegantes bares da Ilha. A terceira noite atravessou-a a dançar mornas e coladeras num quintal de cabo-verdianos, na Chicala, acompanhado por duas amigas de Elizabela. Na quarta noite desapareceu. O adido cultural francês, que combinara almoçar com ele, foi procurá-lo ao lodge onde o haviam hospedado, um lugar muito bonito, perto da Barra do Quanza. Ninguém o vira. O telemóvel não respondia. No quarto, a cama permanecia por abrir, os lençóis esticados, um chocolate pousado na almofada.
Daniel Benchimol soube do desaparecimento do escritor antes da polícia. Bastaram-lhe dois telefonemas para ficar a conhecer, com larga soma de detalhes, onde e com quem Simon-Pierre passara as primeiras noites. Mais duas chamadas e descobriu que o francês fora visto a sair, às cinco da madrugada, de uma discoteca, no Quinaxixe, frequentada por expatriados europeus, catorzinhas, e poetas com mais sede do que inspiração. Nessa noite, deslocou-se à discoteca. Homens gordos, suados, bebiam em silêncio. Outros, em mesas escuras, afagavam os joelhos nus de meninas muito novas. Uma das garotas chamou-lhe a atenção porque trazia na cabeça um chapéu de feltro, negro, com uma fina tira vermelha. Ia para se dirigir a ela quando um sujeito loiro, de cabelo comprido, apanhado num rabo de cavalo, o travou por um braço:
A Queenie está comigo.
Daniel sossegou-o:
Tranquilo. Só quero fazer-lhe uma pergunta.
Não gostamos de jornalistas. O senhor é jornalista?
Tem dias, amigo. Mas sinto-me mais judeu.
O outro largou-o, perplexo. Daniel cumprimentou Queenie:
Boa noite. Queria apenas saber onde arranjou o chapéu.
A garota sorriu:
Um mulato francês que esteve aqui ontem, ele o perdeu.
Perdeu o chapéu?
Ou o contrário, o mulato se perdeu. O chapéu me encontrou.
Explicou que, na noite anterior, um grupo de meninos, desses que moram na rua, vira o francês sair da discoteca. Detivera-se uns metros adiante, nas traseiras de um prédio, para urinar, e então a terra engolira-o. Só ficara o chapéu.
A terra engoliu-o?
É o que estão dizendo, kota. Podem ser areias movediças, pode ser feitiço, não sei. Os meninos puxaram o chapéu com um pau. Eu comprei-lhes o chapéu. Agora é meu.
Daniel saiu da discoteca. Dois meninos viam televisão, sentados no passeio, diante da montra de uma loja. O som da televisão não chegava ao exterior, de forma que os dois improvisavam os diálogos dos sucessivos atores. O jornalista já vira aquele filme. Os novos diálogos, porém, transformavam por completo o enredo. Ficou alguns minutos, divertido, a assistir ao espetáculo. Aproveitou o intervalo para se dirigir aos garotos:
Disseram-me que um sujeito, um francês, desapareceu aqui perto, ontem à noite. Consta que foi engolido pela terra.
Sim, confirmou uma das crianças: Essas coisas acontecem.
Vocês viram?
Não. Mas Baiacu viu.
Daniel interrogou outros meninos, nos dias seguintes, e todos conversavam sobre o triste fim de Simon-Pierre como se o houvessem testemunhado. Depois, apertados, reconheciam não ter estado lá. O certo é que nunca mais ninguém viu o escritor francês. A polícia arquivou o caso.
Na Escala de Benchimol há apenas um desaparecimento de grau dez. O próprio jornalista testemunhou esse incrível extravio. A 28 de abril de 1988, o Jornal de Angola, para o qual Daniel trabalhava, enviou-o, na companhia de um fotógrafo, o famoso Kota Kodak, o KK, a uma pequena localidade chamada Nova Esperança, onde teriam sido assassinadas 25 mulheres, suspeitas de feitiçaria. Os dois repórteres desembarcaram de um avião comercial, no aeroporto do Huambo. Um motorista aguardava-os para os conduzir a Nova Esperança. Uma vez lá, Daniel conversou com o soba e vários populares. KK fez os retratos. Anoitecia quando regressaram ao Huambo. Deveriam ter retornado a Nova Esperança na manhã seguinte, num helicóptero da Força Aérea. O piloto, porém, mostrou-se incapaz de localizar a aldeia:
Estranho, confessou, inquieto, após duas horas a cirandar pelos céus: Não existe nada nessas coordenadas. Lá em baixo só tem capim.
Daniel irritou-se com a inépcia do jovem. Voltou a contratar o motorista que primeiro os havia conduzido. KK recusou-se a acompanhá-los:
Não há nada para fotografar. Não se fotografam ausências.
Andaram às voltas, no carro, revisitando as mesmas paisagens, como num sonho, durante o infinito tempo dos sonhos, até que também o motorista confessou o desconcerto:
Estamos perdidos!
Estamos? Quem se perdeu foi você!
O homem encarou-o enraivecido, como se o achasse responsável pelo delírio do mundo:
Esses caminhos estão mas é muito bêbados. Dava grandes socos no volante: Acho que sofremos um acidente geográfico! Subitamente aconteceu uma curva e emergiram daquele erro, ou daquela ilusão, estonteados e trêmulos. Não encontraram Nova Esperança. Todavia, uma placa devolveu-os à estrada, e esta, ao Huambo. KK aguardava-o no hotel, braços cruzados sobre o peito magro, rosto fechado:
Más notícias, companheiro. Revelei os rolos e estão queimados. Só nos dão material de merda. Cada dia fica pior.
No jornal ninguém pareceu perturbado com a notícia de que Nova Esperança desaparecera. O chefe de redação, Marcelino Assumpção da Boa Morte, soltou uma gargalhada:
O quimbo desapareceu?! Neste país tudo desaparece. Talvez o país inteiro esteja em vias de desaparecimento, uma aldeia aqui, outra acolá, quando dermos por isso não existe nada.
Em 2003, poucas semanas após o misterioso desaparecimento do escritor francês Simon-Pierre Mulamba, ao qual os jornais angolanos deram certo destaque, Marcelino Assumpção da Boa Morte chamou Daniel ao seu gabinete. Estendeu-lhe um envelope azul:
Tenho uma coisa para você, que coleciona desaparecimentos. Leia isto. Veja se dá matéria.
José Eduardo Agualusa, in Teoria Geral do Esquecimento

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