domingo, 28 de abril de 2019

Desventurada família humana (trecho inicial)

Li em alguns ensaios sobre minha poesia que a permanência no Extremo Oriente influiu em determinados aspectos de minha obra, especialmente em Residencia en la Tierra. Na verdade, meus únicos versos daquele tempo foram os de Residencia en la Tierra, mas, sem me atrever a sustentá-lo de forma peremptória, digo que isso da influência me parece um equívoco.
Todo o esoterismo filosófico dos países orientais, confrontado com a vida real, se revelava como um subproduto da inquietude, da neurose, da desorientação e do oportunismo ocidentais; quer dizer, da crise de princípios do capitalismo. Na Índia não havia, naquela época, muitos lugares para contemplações do umbigo profundo. Uma vida de brutais exigências materiais, uma condição colonial sedimentada na mais intensa abjeção, milhões de mortos cada dia, de cólera, de varíola, de febres e de fome, organizações feudais desequilibradas por sua imensa população e sua pobreza industrial, imprimiam à vida uma grande ferocidade na qual os reflexos místicos desapareciam.
Quase sempre os núcleos teosóficos eram dirigidos por aventureiros ocidentais, sem faltar americanos do Norte e do Sul. Não resta dúvida que entre eles havia gente de boa-fé, mas a maioria explorava um mercado barato onde se vendiam, a preços altos, amuletos e fetiches exóticos, envoltos em embalagem metafísica. Essa gente enchia a boca com o Dharma e a Poga. Encantava-os a ginástica religiosa, impregnada de vazio e palavrório.
Por tais razões, o Oriente me impressionou como uma grande e desventurada família humana, sem destinar lugar em minha consciência para seus ritos nem para seus deuses. Não creio pois que minha poesia de então tenha refletido outra coisa que a solidão de um forasteiro transplantado para um mundo violento e estranho.
Lembro de um daqueles turistas do ocultismo, vegetariano e conferencista. Era um sujeito pequenino, de estatura média, calva reluzente e total, claríssimos olhos azuis, olhar penetrante e cínico, de sobrenome Powers. Vinha da América do Norte, da Califórnia, professava a religião budista e suas conferências finalizavam sempre com a seguinte prescrição dietética: “Como dizia Rockefeller, alimente-se com uma laranja por dia.”
Powers me pareceu simpático pelo seu jeito alegre. Falava espanhol. Depois de suas conferências, íamos devorar juntos grandes buchadas de carneiro assado (khebab) com cebola. Era um budista teológico, não sei se legítimo ou ilegítimo, com uma voracidade mais autêntica que o conteúdo de suas conferências.
Logo se ligou, em primeiro lugar, a uma jovem mestiça, enamorada por seu smoking e por suas teorias, uma senhorita anêmica, de olhar dolente, que o julgava um deus, um Buda vivo. Assim começam as religiões.
Ao cabo de alguns meses desse amor, veio me buscar certo dia para que presenciasse um novo casamento seu. Na motocicleta, cedida pela firma comercial em que trabalhava como vendedor de refrigeradores, deixamos velozmente para trás bosques, mosteiros e arrozais. Chegamos finalmente a uma pequena aldeia de construção chinesa e habitantes chineses. Powers foi recebido com foguetes e música, enquanto a noiva adolescente permanecia sentada, maquilada de branco como um ídolo em uma cadeira mais alta que as outras. Ao compasso da música tomamos limonadas de todas as cores. Em momento nenhum Powers e sua nova esposa se dirigiram a palavra.
Regressamos à cidade. Powers explicou que nesse ritual somente a noiva se casava. As cerimônias continuariam sem necessidade de sua presença. Mais tarde voltaria para viver com ela.
- Você se dá conta que está praticando poligamia? - perguntei.
- Minha outra esposa sabe de tudo e ficará muito contente - respondeu.
Nesta afirmação havia tanta verdade como em sua história da laranja cada dia. Uma vez chegados à sua casa, à casa de sua primeira mulher, a mestiça dolente, encontramo-la agonizando com o copo de veneno na mesinha de cabeceira e uma carta de despedida. Seu corpo moreno, totalmente nu, estava imóvel sob o mosquiteiro. Durou várias horas sua agonia.
Acompanhei Powers porque ele sofria evidentemente, apesar de começar a achá-lo repulsivo. O cínico que carregava no íntimo tinha desmoronado. Fui com ele à cerimônia funerária. Na margem de um rio colocamos o ataúde barato sobre um monte de lenha. Powers ateou fogo nos gravetos com um fósforo, murmurando frases rituais em sânscrito.
Uns poucos músicos vestidos com túnicas alaranjadas salmodiavam ou sopravam tristíssimos instrumentos. A lenha se apagava e era preciso reavivar o fogo com os fósforos. O rio corria indiferente dentro de suas margens. O eterno céu azul do Oriente demonstrava também uma impassibilidade absoluta e um desamor infinito para com aquele triste funeral solitário de uma pobre abandonada.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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