domingo, 28 de abril de 2019

A morte de Fantasma

Fantasma morreu durante o sono. Nas últimas semanas comia pouco. Verdade seja dita, nunca comera muito – não havia muito para comer – e talvez isso explique o facto de ter vivido tantos anos. Experiências em laboratório demonstraram que a expetativa de vida de ratinhos sujeitos a uma baixa dieta calórica aumenta muito.
Ludo acordou, e o cão estava morto.
A mulher sentou-se no colchão, frente à janela aberta. Abraçou os joelhos magros. Ergueu os olhos para o céu, onde, pouco a pouco, se iam desenhando leves nuvens cor-de-rosa. Galinhas cacarejavam no terraço. Um choro de criança subia do andar inferior. Ludo sentiu o peito esvaziar-se. Alguma coisa – uma substância escura – escapava de dentro dela, como água de um recipiente estalado, e deslizava depois pelo cimento frio. Perdera o único ser no mundo que a amava, o único que ela amava, e não tinha lágrimas para o chorar.
Ergueu-se, escolheu um pedaço de carvão, afiou-o, e atacou uma das paredes, ainda limpas, no quarto das visitas.

Fantasma morreu esta noite. Tudo é agora tão inútil. O olhar dele me acarinhava, me explicava e me sustinha.

Subiu ao terraço sem o amparo da velha caixa de papelão. O dia expandia-se, num bocejo morno. Talvez fosse domingo. As ruas estavam quase desertas. Viu passar um grupo de mulheres vestidas de um branco imaculado. Uma delas, ao avistá-la, ergueu a mão direita, numa saudação feliz.
Ludo recuou.
Podia saltar, pensou. Avançaria. Subiria ao parapeito, tão simples.
As mulheres, lá em baixo, vê-la-iam um instante, sombra levíssima, a adejar e a cair. Recuou, foi recuando, acuada pelo azul, pela imensidão, pela certeza de que continuaria a viver, mesmo sem nada que desse sentido à vida.

A morte gira ao meu redor, mostra os dentes, rosna. Ajoelho-me e ofereço-lhe a garganta nua. Vem, vem, vem agora, amiga. Morde. Deixa-me partir. Ah, hoje vieste e esqueceste-te de mim. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - A noite. É outra vez noite. Tenho contado mais noites do que dias. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - As noites, pois, e o clamor dos sapos. Abro a janela e vejo a lagoa. A noite desdobrada em duas. - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - Chove, tudo transborda. De noite, é como se a escuridão cantasse. A noite subindo e ondulando, devorando os prédios. Penso, outra vez, naquela mulher a quem devolvi o pombo. Alta, de ossos salientes, com o leve desdém com que as mulheres muito bonitas circulam pela realidade. Passeia no Rio de Janeiro, pela orla da Lagoa (vi fotografias, encontrei na biblioteca vários álbuns sobre o Brasil). Ciclistas cruzam-se com ela. Os que nela demoram o olhar nunca mais regressam. A mulher chama-se Sara, eu chamo-lhe Sara. Parece saída de uma tela de Modigliani.
José Eduardo Agualusa, in Teoria geral do esquecimento

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