Se quiserem saber se pedi muito Ou se nada pedi, nesta minha vida, Saiba, senhor, que sempre me perdi Na criança que fui, tão confundida. À noite ouvia vozes e regressos. A noite me falava sempre sempre Do possível de fábulas. De fadas. O mundo na varanda. Céu aberto. Castanheiras douradas. Meu espanto Diante das muitas falas, das risadas. Eu era uma criança delirante. Nem soube defender-me das palavras. Nem soube dizer das aflições, da mágoa De não saber dizer coisas amantes. O que vivia em mim, sempre calava. E não sou mais que a infância. Nem pretendo Ser outra, comedida. Ah, se soubésseis! Ter escolhido um mundo, este em que vivo, Ter rituais e gestos e lembranças. Viver secretamente. Em sigilo Permanecer aquela, esquiva e dócil. Querer deixar um testamento lírico E escutar (apesar) entre as paredes Um ruído inquietante de sorrisos Uma boca de plumas, murmurante. Nem sempre há de falar-vos um poeta. E ainda que minha voz não seja ouvida Um dentre vós, resguardará (por certo) A criança que foi. Tão confundida.
sábado, 16 de março de 2019
Testamento lírico, de Hilda Hilst
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