sábado, 16 de março de 2019

Stubb e Flash matam uma baleia franca; e depois conversam a respeito dela

É preciso ter em mente que, durante todo esse tempo, tivemos uma prodigiosa cabeça de Cachalote balançando no costado do Pequod. Mas será preciso deixá-la ali pendurada por algum tempo até que tenhamos condições de lhe dar atenção. No momento, outros são os assuntos urgentes, e o melhor que podemos fazer pela cabeça, por ora, é rezar aos céus para que as talhas aguentem.
Ora, durante a noite e pela manhã, o Pequod havia sido levado aos poucos para um mar que, por suas áreas ocasionais de brit amarelo, revelava indícios inusitados da presença de Baleias Francas nos arredores, uma espécie do Leviatã que poucos imaginavam àquela época estar se movendo em quaisquer imediações. Embora, em geral, os marinheiros desprezassem a captura daquelas criaturas inferiores; embora o Pequod não estivesse autorizado a persegui-las, e embora tivesse encontrado várias delas perto das ilhas Crozet sem ter descido os botes; no entanto, uma vez que um Cachalote havia sido levado para o navio e decapitado, para a surpresa de todos, foi anunciado que uma Baleia Franca deveria ser capturada naquele dia, caso houvesse oportunidade.
E a oportunidade não tardou. Jatos altos foram vistos a sotavento; e dois botes, os de Stubb e Flask, foram destacados para a perseguição. Vogando sempre para longe, eles por fim ficaram praticamente invisíveis para os homens no topo do mastro. Mas subitamente, a distância, avistaram uma grande quantidade de água branca em movimento, e em seguida notícias do topo informavam que um dos botes ou ambos deviam estar indo depressa. Passado um tempo, os botes surgiram inteiros aos olhos dos gajeiros, ambos arrastados em direção ao navio pela baleia rebocadora. Tão perto a baleia chegou do casco que, de início, parecia que tinha intenções malignas; mas afundando de repente num redemoinho, a cerca de cinquenta pés das pranchas, ela desapareceu completamente da vista, como se mergulhasse sob a quilha. “Cortar, cortar!”, foi o grito que saiu do navio para os botes, que, por um instante, pareciam a ponto de se chocar mortalmente contra o costado do veleiro. Mas, havendo linha suficiente nas selhas, e a baleia não tendo mergulhado muito depressa, soltaram a corda em abundância e, ao mesmo tempo, remaram com toda a força para ficar à frente do navio. Por alguns minutos, a luta foi intensamente travada; pois, enquanto ainda afrouxavam a linha esticada em uma direção, e ainda impunham aos remos a contrária, a tração conflituosa ameaçava afundá-los. Mas ganhar alguns metros na dianteira era tudo o que queriam. E insistiram até que os ganharam; quando, subitamente, se sentiu um breve tremor correndo como um relâmpago ao longo da quilha, enquanto a ostaxa esticada, arranhando a base do navio, reapareceu de repente sob a proa, estalando e vibrando; e lançando tão violentamente suas gotas d’água que elas caíam como cacos de vidro na água, enquanto a baleia mais adiante também reaparecia, e mais uma vez os botes ficavam livres para correr. Mas a baleia cansada diminuiu a velocidade e, alterando seu rumo às cegas, deu a volta na popa do navio rebocando os dois botes, de forma que percorreram um circuito completo.
No entretempo, eles puxaram mais e mais suas ostaxas, até que, flanqueando a baleia de perto pelos dois lados, Stubb e Flask arremessaram suas lanças; e assim, a batalha continuou, dando voltas no Pequod, enquanto as multidões de tubarões que antes nadavam em torno do corpo do Cachalote correram para o sangue fresco que derramava, bebendo-o com sede a cada novo corte, como os ávidos Israelitas o fizeram nas fontes novas que brotaram da rocha fendida.
Por fim seu sopro ficou espesso e, com um tranco e um vômito horrível, a baleia virou de costas, um cadáver.
Enquanto os dois oficiais se ocupavam de amarrar as cordas à cauda da baleia, nesse sentido cuidando para que a massa pudesse ser rebocada, iniciaram uma conversa.
O que será que o velho deseja com esse monte de banha fétida?”, disse Stubb, não sem alguma aversão à ideia de ter de lidar com um Leviatã tão desprezível.
O que deseja?”, disse Flask, enrolando a ostaxa sobressalente na proa do bote, “você nunca escutou falar que desde que um navio traga a cabeça de um Cachalote pendurada a estibordo, e ao mesmo tempo a de uma Baleia Franca a bombordo; Stubb, você nunca escutou que esse navio nunca mais poderá naufragar?”
Por que não?”
Eu não sei, mas escutei Fedallah, aquele fantasma amarelo, dizer isso e parece que sabe tudo a respeito de feitiços de navios. Mas às vezes acho que ele vai enfeitiçar o navio com maldade. Não gosto nem um pouco daquele sujeito, Stubb. Você já percebeu que aquela presa dele parece entalhada na cabeça de uma cobra, Stubb?”
Afogue-o! Nunca olho para ele; mas se eu tiver uma oportunidade, numa noite escura, e ele estiver ocupado em sua vigília na amurada, com ninguém por perto; olha lá, Flask” – apontando para o mar com um gesto específico de ambas as mãos – “Sim, eu o faço! Flask, tenho para mim que Fedallah é o demônio disfarçado. Você acredita naquela história sem pé nem cabeça de que ele veio a bordo como clandestino? Ele é o demônio, vá por mim. A gente só não vê o rabo dele porque ele o esconde; acho que enrolado em seu bolso. Maldito seja! Pensando nisso, ele sempre pede estopa para colocar na ponta das suas botas.”
Ele dorme em suas botas, não é? Ele não tem rede; mas eu já dei com ele deitado sobre um rolo de cordame.”
Sem dúvida, e isso é por causa de seu maldito rabo; ele o deixa enrolado no olho do cordame.”
O que será que o velho tanto quer com ele?” “Uma troca ou uma barganha, creio.”
Barganha? – de quê?”
Ora, preste atenção, o velho está empenhado na caça da Baleia Branca, e o diabo está tentando envolvê-lo, aliciá-lo em troca de seu relógio de prata, ou de sua alma, ou de qualquer coisa do gênero, para depois lhe entregar Moby Dick.”
Ora essa! Stubb, você está de brincadeira; como Fedallah pode fazer uma coisa dessas?”
Não sei, Flask, mas o diabo é um sujeito curioso e bem malvado, posso lhe garantir. Pois bem, dizem que certa vez foi dar um passeio numa velha nau capitânia, abanando a cauda de modo diabólico e cavalheiresco e perguntando se o velho comandante estava em casa. Bem, ele estava em casa e perguntou ao diabo o que queria. O diabo, batendo os cascos, se levanta e diz, ‘Quero o John’. ‘Para quê?’, pergunta o velho comandante. ‘O que você tem com isso?’, disse o diabo, ficando irritado, – ‘Quero usá-lo!’. ‘Leve-o’, diz o comandante – e, pelo amor de Deus, Flask, se o diabo não castigou John com a cólera Asiática antes de acabar com ele, eu como essa baleia em uma bocada. Mas cuidado – você ainda não ‘tá pronto? Bem, puxe daí, e vamos deixar a baleia ao longo do costado.”
Acho que me lembro de uma história como essa que você contou”, disse Flask, quando, por fim, os dois botes avançavam lentamente com a carga em direção ao navio, “mas não consigo me lembrar de onde.”
Nos Três espanhóis? As aventuras dos três soldados sanguinários? Você leu ali, Flask? Acho que sim.”
Não: nunca vi tal livro; já ouvi falar dele, de todo modo. Mas agora me diga uma coisa, Stubb, você acha que o diabo de quem você estava falando agora é o mesmo que você diz estar a bordo do Pequod?”
Sou o mesmo homem que ajudou a matar essa baleia? O diabo não vive para sempre? Quem já ouviu falar que o diabo morreu? Você já viu algum padre enlutado por causa do diabo? Se o diabo tem uma chave de cadeado para entrar na cabine do almirante, você não acha que ele pode rastejar pela vigia? Responda, senhor Flask.”
Quantos anos você acha que Fedallah tem, Stubb?”
Você está vendo o mastro principal ali?”, apontando para o navio; “bem, esse é o número um; agora pegue todos os aros do porão do Pequod e os coloque enfileirados atrás do mastro, no lugar dos zeros, entendeu? Bem, isso não daria para o começo da idade de Fedallah. Nem todos os toneleiros trabalhando juntos poderiam oferecer aros em número suficiente para tantos zeros.”
Mas vê bem, Stubb, agora mesmo achava você um pouco cheio de bravata, quando disse que jogaria Fedallah ao mar, se houvesse oportunidade. Ora, se ele é tão velho quanto esses seus aros dizem, se ele vai viver para sempre, de que adiantaria jogá-lo ao mar – quer me dizer?”
Ele ao menos ganharia um bom mergulho.”
Mas ele voltaria.”
E que ele mergulhasse de novo; e assim continuasse, mergulho após mergulho.”
E se ele tivesse a ideia de fazer você mergulhar também – sim, e afogá-lo –, e então?”
Gostaria de vê-lo tentar; eu lhe daria dois olhos tão roxos que ele não ousaria mais mostrar seu rosto na cabine do almirante por um bom tempo, muito menos naquele bailéu, onde ele vive, e no tombadilho, por onde se move sorrateiro. Dane-se o diabo, Flask; você pensa que tenho medo do diabo? Quem tem medo dele, a não ser o velho comandante, que não ousa agarrá-lo e algemá-lo, como merece, mas o deixa andar por aí roubando pessoas? Sim, e assinou um contrato com ele permitindo que fritasse todas as pessoas que tivesse roubado. Que comandante!”
Você acredita que Fedallah queira roubar o Capitão Ahab?”
Se acredito? Logo vai saber, Flask. Mas agora vou ficar de olho nele; e, se eu vir alguma coisa suspeita acontecendo, vou agarrá-lo pelo colarinho e dizer – Olha aqui, Belzebu, você não vai fazer isso; e se ele fizer algum estardalhaço, juro por Deus que tiro o rabo dele do bolso, levo para o cabrestante e dou-lhe tantos puxões e trancos que seu rabo vai ficar tão pequeno quanto um coto –entendeu? E depois disso, creio que quando se vir atracado daquele jeito esquisito, decepado, vai rastejar daqui sem nem ao menos sentir alegria de ter o rabo entre as pernas.”
E o que você vai fazer com o rabo, Stubb?”
O que vou fazer? Vendê-lo como um chicote de boi quando voltarmos para casa – o que mais?”
Ora, você está falando a sério? Você está falando a sério desde o começo, Stubb?”
Sério ou não, agora chegamos ao navio.”
Os botes foram chamados para rebocar a baleia para o costado de bombordo, onde correntes para a cauda e outros apetrechos haviam sido preparados para prendê-la.
Não falei?”, disse Flask; “sim, em breve você vai ver a cabeça dessa baleia franca pendurada do lado oposto à do Cachalote.”
Não muito depois, as palavras de Flask provaram ser verdadeiras. Antes o Pequod havia se inclinado abruptamente na direção da cabeça do Cachalote; agora, com o contrapeso das duas cabeças, a quilha retomou a posição de sempre; embora isso lhe custasse muito esforço, acredite. Assim, quando você iça de um lado a cabeça de Locke, vai-se para esse lado; mas então erga a cabeça de Kant do outro lado, e você volta à posição anterior; mas num estado deplorável. Desse modo, certas mentes estão sempre tentando retomar o prumo. Ó, insensatos! Jogai ao mar todas essas cabeças retumbantes e navegareis direto e reto.
Arrumando o corpo de uma baleia franca, quando trazida para o costado do navio, segue-se o mesmo procedimento preliminar dedicado ao Cachalote; apenas, no caso do último, a cabeça é cortada por inteiro, enquanto no primeiro lábios e língua são retirados e pendurados separadamente no convés, com a conhecida barbatana escura presa à chamada coroa. Mas, nesse caso, nada disso foi feito. As carcaças das duas baleias foram deixadas para trás; e o navio levando as duas cabeças parecia uma mula carregando dois cestos muito pesados.
Enquanto isso, Fedallah olhava tranquilamente para a cabeça da baleia franca, e, de vez em quando, seus olhos passavam das rugas profundas do animal para as linhas de sua própria mão. E Ahab estava numa posição tal, que o Parse ocupava sua sombra; enquanto, se é que o Parse tinha uma sombra, esta se fundiu com a de Ahab, encompridando-a. Enquanto os marinheiros trabalhavam, faziam conjecturas Lapônicas a respeito de todas as coisas acontecidas.
Herman Melville, in Moby Dick

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