(Na
morte de Paul Éluard)
Ainda
tenho no ouvido tua voz grave, feita metálica pelo interurbano, a me
dizer do México para Los Angeles: “Alors, mon vieux, qu'est-ce que
tu attends? Viens, donc... “ Tu me chamavas sem me conhecer, porque
sabias que eu sou poeta, não tão grande quanto és, não tão bravo
quanto foste, não tão necessário quanto serás; mas poeta, e poeta
atento às necessidades do seu tempo. Tu me chamavas porque outros
poetas, amigos nossos, te haviam falado de mim.
Eras
tu, Di Cavalcanti, Neruda, Guillén, a me chamarem, a me mandarem
cartas escritas em bares, cheias de fraternidade e palavrões, a me
falarem da beleza do México e do gosto da tequilla, a me cativarem
para o vosso convívio boêmio e grave.
E
eu fui. Fui porque me “tutoiaste” sem me conhecer, nessa grande
intimidade que só os poetas têm e só a poesia pode dar. Mas quando
cheguei já havias partido para França, a compromissos urgentes.
Conheci tua mulher, tua terceira mulher Dominique, que ficara por uns
poucos dias mais, essa menina alta, de face lisa de campônia, que
vivia ainda envolta na beleza das coisas que lhe deras e lhe
disseras. Tinhas casado com ela dias antes, depois de um passeio
louco em companhia de Siqueiros e sua mulher pelo México adentro.
Ela só tinha na boca jovem um nome: o teu nome. Ela dizia Paul,
Paul, Paul, Paul - com uma esperança simples no olhar. Seus braços
traziam ainda as marcas de tuas carícias de homem. Tinhas dado um
papagaio a ela, e ela o carregava alto no dedo e lhe falava de ti,
dizia-lhe que breve estaríeis todos juntos na França, e que ele
teria de ter juízo e não falar quando o poeta estivesse
trabalhando, pois o poeta era um homem cheio de poemas a fazer. Ela
lhe falava como a uma criança, a voz quente, e as penas da cabeça
da ave eriçavam-se brandamente enquanto engrolava também doces
absurdos.
Tua
morte - como a de Mário de Andrade, de angina pectoris - chegou-me,
tal a dele, como um teor vazio e abstrato. Inútil pensar que
morreste. Mário morreu por acaso? Não vem ele visitar-me sempre que
estou sozinho, sempre que estou sofrendo, o amigo fiel? - e não
pousa como dantes a grande mão no meu ombro e se deixa horas comigo
a discutir os velhos assuntos sentidos, poesia, amizade, beleza,
amor, morte, vida, arte, povo, mulher, bebida - e poesia ainda, e
ainda poesia, e mais poesia?
Loucura
pensar que morreste. Sobre cada face viva, sobre cada coisa viva,
sobre o coração da vida - escrevo o teu nome.
Escrevo
o teu nome sobre os degraus da morte, gravo-o a fogo sobre os seios
da aurora, pinto-o em luz sobre tudo o que é triste, escuro e
trágico. Tu escolheste. Tu foste claro, ardente, digno. Delicado até
os ossos de ti mesmo - esses que restarão de tua bela figura de
homem - tu enfrentaste a brutalidade dos carrascos. Hoje eu digo o
teu nome e digo-o sentindo-me melhor por ter participado do teu tempo
humano. Teu nome é também Liberdade, Paul Éluard.
Vinicius
de Moraes, in Prosa
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