Macabéa
entendeu uma coisa: Glória era um estardalhaço de existir. E tudo
devia ser porque Glória era gorda. A gordura sempre fora o ideal
secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz dizer para uma
gorda que passava na rua: “a tua gordura é formosura!” A partir
de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de
sua vida. Pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau.
(Já então tinha tendência para anúncios.) A tia perguntara-lhe:
você pensa lá que é filha de família querendo luxo?
Depois
que Olímpico a despediu, já que ela não era uma pessoa triste,
procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela não sentiu
desespero, etc. etc.) Também que é que ela podia fazer? Pois ela
era crônica. E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para
quem podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo.
Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela
teve uma ideia. Já que ninguém lhe dava festa, muito menos noivado,
daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em comprar sem
necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas
vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora
dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa
esquisita dos lábios de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou
olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois
em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos
lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne
(pequena explosão). Quando voltou para a sala de trabalho Glória
riu-se dela:
– Você
endoidou, criatura? Pintar-se como uma endemoniada? Você até parece
mulher de soldado.
– Sou
moça virgem! Não sou mulher de soldado e marinheiro.
– Me
desculpe eu perguntar: ser feia dói?
– Nunca
pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você
que é feia sente dor.
Eu
não sou feia!!! — gritou Glória.
Depois
tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada.
Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se
arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória
perguntou-lhe:
– Por
que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando,
embora isso custe dinheiro.
– É
para eu não me doer.
– Como
é que é? Hein? Você se dói?
– Eu
me doo o tempo todo.
– Aonde?
– Dentro,
não sei explicar.
Aliás
cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se em
simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas
simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo
passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o
grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia que ela
ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas
outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era
saber engolir pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava
aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um banho de calor
gostoso no coração. Glória advertiu-a:
– Um
dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de
pescoço meio cortado, correndo por aí.
Um
dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no
tronco ela nunca poderia abraçá-la. Mas apesar do êxtase ela não
morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus
dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz,
feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador.
Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e
mesmo contar o quê? O ar? Não se conta tudo porque o tudo é um oco
nada.
Clarice
Lispector, in A hora da estrela
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