quarta-feira, 20 de março de 2019

Sem anjo da guarda

Macabéa entendeu uma coisa: Glória era um estardalhaço de existir. E tudo devia ser porque Glória era gorda. A gordura sempre fora o ideal secreto de Macabéa, pois em Maceió ouvira um rapaz dizer para uma gorda que passava na rua: “a tua gordura é formosura!” A partir de então ambicionara ter carnes e foi quando fez o único pedido de sua vida. Pediu que a tia lhe comprasse óleo de fígado de bacalhau. (Já então tinha tendência para anúncios.) A tia perguntara-lhe: você pensa lá que é filha de família querendo luxo?
Depois que Olímpico a despediu, já que ela não era uma pessoa triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido. (Ela não sentiu desespero, etc. etc.) Também que é que ela podia fazer? Pois ela era crônica. E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para quem podia, para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo. Esqueci de dizer que no dia seguinte ao que ele lhe dera o fora ela teve uma ideia. Já que ninguém lhe dava festa, muito menos noivado, daria uma festa para si mesma. A festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante. No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que os seus lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe. Depois de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada. Pois em vez de batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne (pequena explosão). Quando voltou para a sala de trabalho Glória riu-se dela:
Você endoidou, criatura? Pintar-se como uma endemoniada? Você até parece mulher de soldado.
Sou moça virgem! Não sou mulher de soldado e marinheiro.
Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.
Eu não sou feia!!! — gritou Glória.
Depois tudo passou e Macabéa continuou a gostar de não pensar em nada. Vazia, vazia. Como eu disse, ela não tinha anjo da guarda. Mas se arranjava como podia. Quanto ao mais, ela era quase impessoal. Glória perguntou-lhe:
Por que é que você me pede tanta aspirina? Não estou reclamando, embora isso custe dinheiro.
É para eu não me doer.
Como é que é? Hein? Você se dói?
Eu me doo o tempo todo.
Aonde?
Dentro, não sei explicar.
Aliás cada vez mais ela não se sabia explicar. Transformara-se em simplicidade orgânica. E arrumara um jeito de achar nas coisas simples e honestas a graça de um pecado. Gostava de sentir o tempo passar. Embora não tivesse relógio, ou por isso mesmo, gozava o grande tempo. Era supersônica de vida. Ninguém percebia que ela ultrapassava com sua existência a barreira do som. Para as pessoas outras ela não existia. A sua única vantagem sobre os outros era saber engolir pílulas sem água, assim a seco. Glória, que lhe dava aspirinas, admirava-a muito, o que dava a Macabéa um banho de calor gostoso no coração. Glória advertiu-a:
Um dia a pílula te cola na parede da garganta que nem galinha de pescoço meio cortado, correndo por aí.
Um dia teve um êxtase. Foi diante de uma árvore tão grande que no tronco ela nunca poderia abraçá-la. Mas apesar do êxtase ela não morava com Deus. Rezava indiferentemente. Sim. Mas o misterioso Deus dos outros lhe dava às vezes um estado de graça. Feliz, feliz, feliz. Ela de alma quase voando. E também vira o disco-voador. Tentara contar a Glória mas não tivera jeito, não sabia falar e mesmo contar o quê? O ar? Não se conta tudo porque o tudo é um oco nada.
Clarice Lispector, in A hora da estrela

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