domingo, 24 de março de 2019

Nunca que o homem voará

Lançado há três meses, “The Collected Poems of Bertolt Brecht” mudou a estatura do escritor alemão no mundo anglo-americano. Dia virá em que a alteração atingirá outros idiomas. De dramaturgo datado, Brecht será visto como o grande poeta de tempos sombrios —do nosso tempo.
A mudança envolve quantidade e qualidade. A nova tradução inglesa, de David Constantine e Tom Kuhn, tem 1.287 páginas. Brecht escreveu mais de 2.000 poemas. Começou aos 15 anos e só parou ao morrer, de enfarte, aos 58. Menos da metade deles foram publicados em vida.
Mesmo em alemão, sua edição foi a conta-gotas. No original, o último dos quatro volumes de sua poesia saiu 37 anos depois de ele morrer, em 1956. Em português, nem se fala. A boa tradução de Paulo César de Souza (publicada pela editora 34) tem apenas 260 poemas.


Ilustração: Bruna Barros

A quantidade prodigiosa de versos corresponde a uma virtuosidade estupenda. Ele fez sonetos, elegias, sátiras, baladas, corais, paródias, aforismas, canções, poemas infantis, pornôs e de agitprop. Qualquer que seja a forma, a sua voz límpida é reconhecida de imediato.
Ela é a expressão de um homem que, como disse Hannah Arendt, “quase nunca esteve interessado em si mesmo”. Voltado para fora, Brecht apreendeu o seu tempo por meio do estudo e da inteligência. O pensamento —objetivo, engajado, provocador— é a qualidade maior de seus versos.
A poesia-pensamento não registra comiserações inefáveis, estados d'alma, finuras fugazes. Alheia ao borbulhar do gênio, ela duvida, argumenta, espicaça, quer convencer. É arma estética na luta de classes.
Brecht viveu uma revolução triunfante (a russa), outra derrotada (a alemã) e duas guerras mundiais. O nazismo o exilou, o macarthismo o caçou, o stalinismo quis comprá-lo. Fez sucesso, ganhou um bom dinheiro, era comunista e criativo —uma mescla de combustão calcinante.
Política, para ele, significava mudar a si mesmo, ao leitor/espectador e ao mundo. Algo do que pensou a respeito da chance e possibilidade de mudar está nesses dois poemas, transcritos e ilustrados por Bruna Barros.
Em “Esses Dois”, um casal quer dizer o que um sente pelo outro. Mas a dificuldade em falar, em confessar, os emudece. Resta o silêncio do poema. Ele capta a mudança que não ocorreu, que ficou para trás e, contudo, continua presente, foi posta em versos.
Esses Dois” encanta por ser simples e conciso. E porque, escrito em 1913, foi publicado pela primeira vez só 76 anos depois, mais de três décadas após Brecht ser enterrado. Quem o escreveu foi um carinha de 15 anos. Ele aprendia que é preciso dizer e mudar —e que tem de ser agora.
Ulm 1592” é uma canção infantil, “kinderlieder”. Reza a lenda que, em 1592, um alfaiate da cidade de Ulm, na Alemanha, tentou voar. Construiu asas, amarrou-as aos braços e subiu na torre da catedral gótica, até hoje a mais alta do mundo. Galgou os 161 metros da torre, saltou e...
Brecht se diverte com o alfaiate pinel, compartilha a ansiedade da criançada, tripudia da ranzinzice do bispo, muito cônscio de suas sensatas certezas. O afogueado alfaiate se dá mal. Mas a previsão do prelado de púrpura, de que o homem nunca voará, é risível também.
A simpatia de Brecht está com o artesão imaginoso, que se veste de asas para vencer a lei da natureza. O bispo, realista, a longo prazo se revela tacanho e pedestre. Cabe a pergunta: o alfaiate, com a sua queda, contribuiu para que o homem voasse? Ou seu esforço foi apenas ridículo?
Lucio Magri (1932-2011), dirigente do Partido Comunista Italiano durante décadas, escreveu um livro de memórias, ao qual deu o título de “O Alfaiate de Ulm”. O PCI, que foi o maior partido comunista europeu no pós-Guerra, ruiu junto com o Muro de Berlim.
Magri e um punhado de camaradas tentaram preservar a experiência, e as lutas, de uma geração de gente que batalhou uma sociedade nova, sem exploração. Criaram o jornal “Il Manifesto” e puseram de pé outras organizações de trabalhadores - que vieram a se cindir até virarem pó.
Viúvo e acabrunhado, Magri optou pelo suicídio, na Suíça, organizado pela filha e pela neta. “O Alfaiate de Ulm” (publicado pela Boitempo) foi sua última tentativa de dar um sentido à sua vida —e à de tantos outros.
Tudo isso passou e bispo é o que não falta. Melhor desistir de mudar, como “Aqueles Dois”? Dar um balanço e se suicidar, como o militante? Perseverar, como o poeta? Brecht diria:
Tantos relatos.
Tantas perguntas.”
Mario Sergio Conti, in Folha de S. Paulo, 23/03/2019

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