Lançado
há três meses, “The Collected Poems of Bertolt Brecht” mudou a
estatura do escritor alemão no mundo anglo-americano. Dia virá em
que a alteração atingirá outros idiomas. De dramaturgo datado,
Brecht será visto como o grande poeta de tempos sombrios —do nosso
tempo.
A mudança envolve quantidade e
qualidade. A nova tradução inglesa, de David Constantine e Tom
Kuhn, tem 1.287 páginas. Brecht escreveu mais de 2.000 poemas.
Começou aos 15 anos e só parou ao morrer, de enfarte, aos 58. Menos
da metade deles foram publicados em vida.
Mesmo em alemão, sua edição foi a
conta-gotas. No original, o último dos quatro volumes de sua poesia
saiu 37 anos depois de ele morrer, em 1956. Em português, nem se
fala. A boa tradução de Paulo César de Souza (publicada pela
editora 34) tem apenas 260 poemas.
Ilustração: Bruna Barros
A quantidade prodigiosa de versos
corresponde a uma virtuosidade estupenda. Ele fez sonetos, elegias,
sátiras, baladas, corais, paródias, aforismas, canções, poemas
infantis, pornôs e de agitprop. Qualquer que seja a forma, a sua voz
límpida é reconhecida de imediato.
Ela é a expressão de um homem que, como
disse Hannah Arendt, “quase nunca esteve interessado em si mesmo”.
Voltado para fora, Brecht apreendeu o seu tempo por meio do estudo e
da inteligência. O pensamento —objetivo, engajado, provocador— é
a qualidade maior de seus versos.
A poesia-pensamento não registra
comiserações inefáveis, estados d'alma, finuras fugazes. Alheia ao
borbulhar do gênio, ela duvida, argumenta, espicaça, quer
convencer. É arma estética na luta de classes.
Brecht viveu uma revolução triunfante
(a russa), outra derrotada (a alemã) e duas guerras mundiais. O
nazismo o exilou, o macarthismo o caçou, o stalinismo quis
comprá-lo. Fez sucesso, ganhou um bom dinheiro, era comunista e
criativo —uma mescla de combustão calcinante.
Política, para ele, significava mudar a
si mesmo, ao leitor/espectador e ao mundo. Algo do que pensou a
respeito da chance e possibilidade de mudar está nesses dois poemas,
transcritos e ilustrados por Bruna Barros.
Em “Esses Dois”, um casal quer dizer
o que um sente pelo outro. Mas a dificuldade em falar, em confessar,
os emudece. Resta o silêncio do poema. Ele capta a mudança que não
ocorreu, que ficou para trás e, contudo, continua presente, foi
posta em versos.
“Esses Dois” encanta por ser simples
e conciso. E porque, escrito em 1913, foi publicado pela primeira vez
só 76 anos depois, mais de três décadas após Brecht ser
enterrado. Quem o escreveu foi um carinha de 15 anos. Ele aprendia
que é preciso dizer e mudar —e que tem de ser agora.
“Ulm 1592” é uma canção infantil,
“kinderlieder”. Reza a lenda que, em 1592, um alfaiate da cidade
de Ulm, na Alemanha, tentou voar. Construiu asas, amarrou-as aos
braços e subiu na torre da catedral gótica, até hoje a mais alta
do mundo. Galgou os 161 metros da torre, saltou e...
Brecht se diverte com o alfaiate pinel,
compartilha a ansiedade da criançada, tripudia da ranzinzice do
bispo, muito cônscio de suas sensatas certezas. O afogueado alfaiate
se dá mal. Mas a previsão do prelado de púrpura, de que o homem
nunca voará, é risível também.
A simpatia de Brecht está com o artesão
imaginoso, que se veste de asas para vencer a lei da natureza. O
bispo, realista, a longo prazo se revela tacanho e pedestre. Cabe a
pergunta: o alfaiate, com a sua queda, contribuiu para que o homem
voasse? Ou seu esforço foi apenas ridículo?
Lucio Magri (1932-2011), dirigente do
Partido Comunista Italiano durante décadas, escreveu um livro de
memórias, ao qual deu o título de “O Alfaiate de Ulm”. O PCI,
que foi o maior partido comunista europeu no pós-Guerra, ruiu junto
com o Muro de Berlim.
Magri e um punhado de camaradas tentaram
preservar a experiência, e as lutas, de uma geração de gente que
batalhou uma sociedade nova, sem exploração. Criaram o jornal “Il
Manifesto” e puseram de pé outras organizações de trabalhadores
- que vieram a se cindir até virarem pó.
Viúvo e acabrunhado, Magri optou pelo
suicídio, na Suíça, organizado pela filha e pela neta. “O
Alfaiate de Ulm” (publicado pela Boitempo) foi sua última
tentativa de dar um sentido à sua vida —e à de tantos outros.
Tudo isso passou e bispo é o que não
falta. Melhor desistir de mudar, como “Aqueles Dois”? Dar um
balanço e se suicidar, como o militante? Perseverar, como o poeta?
Brecht diria:
“Tantos relatos.
Tantas perguntas.”
Mario Sergio Conti, in Folha de S.
Paulo, 23/03/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário