domingo, 24 de março de 2019

Noventa e três

Foram entrando um por um. O velho estava na cabeceira, cabeceando. À medida que entravam, alguém anunciava os nomes, descrevendo em alta voz o jeito dos vestidos. Os netos encheram sala, os bisnetos sobraram no quintal. O avô levantava um olhar silencioso, sem luz. Sorria o tempo todo: não queria cometer indelicadeza. O avô fingia, aniversariamente. Porque em nenhum outro dia os outros dele se recordavam. Deixavam-no poeirando com os demais objetos da sala.
Esta noite, as prendas se juntam e ele apalpa os embrulhos. O seu gesto não leva desacerto. Afinal, não há mão mais segura que a do cego. Porque o cego agarra o que há e o resto não acontece. Lugar de quem não vê está sempre certo: afinal, só erra quem pode escolher. O velho agradece, vidente invisual. Tudo estando longe da vista, perto do coração.
Os convidados ficam um tempito junto dele, não sabem o que dizer, não há quase nada a dizer, o velho ouve só acima das gritarias. Depois, quem sabe olhar um cego? Vendo-o assim esplendoloroso, acreditam, para sossego deles, que o avô já tenha adormecido. O dia lhe sendo igual à noite, o cego bem deve dormir de ouvido.
Mas o avô apenas se finge dormido. Naquele enquanto, ele apenas aguarda uma fresta para poder exercer sua mais secreta malandrice. Todos os dias escapa do lar. Quando a cidade refreia o pulso, ele sai à rua. Nunca lhe notaram essas ausências. Nem imaginam que, andando em tropeços tão pequenos que nunca chega a cair, ele diariamente se evade para o jardim público. Vai encontrar seus dois vigentes amigos: um gato silvestre e Ditinho, o menino da rua, desses que perderam morada. O miúdo lhe conversa e o velho lhe oferece uma nenhumita coisa que roubou de casa. Para ambos, o mundo é muito grande. Cansado de puxar estória, o miúdo adormece. Amolecido, o avô também se aplica no banco de jardim. Até que aparece o gato, mais meloso que rameloso. O gatito se esfrega, seu todo corpo é uma língua lambendo o velho. O bicho ronrosna, farfalhante. Gato que ama é sempre asmático?
Agora, por entre os barulhos que invadiram toda a casa, o avô sente saudade do jardim. Será que pode sair?
Sair?
Os familiares se admiram, indignados. Então, no preciso dia de anos? E aonde? O velho se resigna, desistido. Que ele era de manias já sabiam. Exemplo: há três anos atrás ele decidira fazer seu próprio caixão. A família se perguntava: que deu nele? A filha mais velha estremeceu: seria pressentimento? Os irmãos, contudo, riram: disparate! O velho, no enquanto, prosseguia a construção. Hoje um toque, amanhã um retoque. Esta é a morada a mais definitiva, obra para nossa eternidade, não será que vale a pena cuidar dela? Vocês estão a vida inteira trabalhando para erguer casa provisória; eu trabalho no definitivo.
Por isso, os familiares não se perturbam com os desejos do velho. Em plena comemoração da sua idade ele quer ir passear-se longe e sozinho? Coisa de menino, delírio infantil. E assim deixam o velho na poltrona da cabeceira, em aparência de sono. Todos se garantem de que ele não precisa mais cuidado. Mas a ilusão de se estar certo nasce de todos estarem errados no mesmo momento. Pois, o velho, de repente, proclama a súbita pergunta:
Me desculpem vocês todos: mas, fim ao cabo, quantos anos eu faço?
Riram-se. O velho malandrava, devia fingir esquecimento. Uma voz se levanta, lhe anunciando a idade. O velho franze a testa, desconfiado:
Noventa e três?
Parecia atônito. No restante da noite, ele intervalava a cadeira com repentinos espantos. E voltava:
Noventa e três?
Mais tarde, já as danças se emparelhavam. O velho tropeçando entre os casais, aborda um alguém: me desculpa, meu filho, em que ano estamos?
Noventa e três, pai.
Não, corrige o velho. Pergunto em que ano estamos. Mas já ninguém estava. A multidão, ruidosa, acelera os festejos. Naquela alegria não cabem avôs. As bebidas correm, as mentes se vão tornando líquidas.
Finalmente, trazem o bolo de aniversário. O velho sopra em todo o lado menos no bolo. Decidem todos juntos apagar as velas, na vez do festejado. O bolo é cortado rápido, há que regressar à alegria. O velho deve estar por aí dormindo, dizem, ele descansa assim no meio de qualquer momento. Mas o avô não dorme. Está quieto sofrendo de saudade dos seus companheiros da rua, Ditinho mais o gato. Esses, sim, mereciam pensamento. Só para eles, vadios do jardim, ele se sentia avô.
E sem que ninguém se aperceba, o aniversariante escapa do aniversário. Se adentra no jardinzito e se estende no banco, suspirando uma leve felicidade. O gato desce da paisagem e se enrosca docemente no braço. O velho lhe tinha reservado um doce roubado à festa. Ditinho chega depois, vindo de jantar um lixo.
Diante do banco, o miúdo espreita curioso. Nunca o velho se apresentara tão tardio. A criança se senta, familiar. Coloca a mão no bolso do avô, avalia-lhe o volume da carteira e pergunta:
Então, quanto temos aqui?
O velho sorri, leva a mão ao peito e proclama:
Noventa e três!
Os olhos do miúdo relampejam:
Tudo isso? Estás rico, vavô.
O velho concorda, acendendo um sorriso. O menino tinha o coração em trabalho de parto:
Com esse tanto dinheiro hoje vamos fartar por aí: comer, beber, gargalhotar.
E se levanta, puxando o velho por uma escura ruela. O avô ainda se lembra: a minha bengala! Mas Ditinho responde: sua bengala, a partir de hoje, sou eu. E se afastam os dois, cada vez mais longe dos ruídos da festa de aniversário. No jardim, o gato esfrega uma saudade na esquecida bengala. Depois, corre pelo beco escuro, juntando-se aos dois amigos que, já longe, festejavam o tempo, comemorando o dia em que todos os homens fazem anos.
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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