Foram
entrando um por um. O velho estava na cabeceira, cabeceando. À
medida que entravam, alguém anunciava os nomes, descrevendo em alta
voz o jeito dos vestidos. Os netos encheram sala, os bisnetos
sobraram no quintal. O avô levantava um olhar silencioso, sem luz.
Sorria o tempo todo: não queria cometer indelicadeza. O avô fingia,
aniversariamente. Porque em nenhum outro dia os outros dele se
recordavam. Deixavam-no poeirando com os demais objetos da sala.
Esta
noite, as prendas se juntam e ele apalpa os embrulhos. O seu gesto
não leva desacerto. Afinal, não há mão mais segura que a do cego.
Porque o cego agarra o que há e o resto não acontece. Lugar de quem
não vê está sempre certo: afinal, só erra quem pode escolher. O
velho agradece, vidente invisual. Tudo estando longe da vista, perto
do coração.
Os
convidados ficam um tempito junto dele, não sabem o que dizer, não
há quase nada a dizer, o velho ouve só acima das gritarias. Depois,
quem sabe olhar um cego? Vendo-o assim esplendoloroso, acreditam,
para sossego deles, que o avô já tenha adormecido. O dia lhe sendo
igual à noite, o cego bem deve dormir de ouvido.
Mas
o avô apenas se finge dormido. Naquele enquanto, ele apenas aguarda
uma fresta para poder exercer sua mais secreta malandrice. Todos os
dias escapa do lar. Quando a cidade refreia o pulso, ele sai à rua.
Nunca lhe notaram essas ausências. Nem imaginam que, andando em
tropeços tão pequenos que nunca chega a cair, ele diariamente se
evade para o jardim público. Vai encontrar seus dois vigentes
amigos: um gato silvestre e Ditinho, o menino da rua, desses que
perderam morada. O miúdo lhe conversa e o velho lhe oferece uma
nenhumita coisa que roubou de casa. Para ambos, o mundo é muito
grande. Cansado de puxar estória, o miúdo adormece. Amolecido, o
avô também se aplica no banco de jardim. Até que aparece o gato,
mais meloso que rameloso. O gatito se esfrega, seu todo corpo é uma
língua lambendo o velho. O bicho ronrosna, farfalhante. Gato que ama
é sempre asmático?
Agora,
por entre os barulhos que invadiram toda a casa, o avô sente saudade
do jardim. Será que pode sair?
— Sair?
Os
familiares se admiram, indignados. Então, no preciso dia de anos? E
aonde? O velho se resigna, desistido. Que ele era de manias já
sabiam. Exemplo: há três anos atrás ele decidira fazer seu próprio
caixão. A família se perguntava: que deu nele? A filha mais velha
estremeceu: seria pressentimento? Os irmãos, contudo, riram:
disparate! O velho, no enquanto, prosseguia a construção. Hoje um
toque, amanhã um retoque. Esta é a morada a mais definitiva, obra
para nossa eternidade, não será que vale a pena cuidar dela? Vocês
estão a vida inteira trabalhando para erguer casa provisória; eu
trabalho no definitivo.
Por
isso, os familiares não se perturbam com os desejos do velho. Em
plena comemoração da sua idade ele quer ir passear-se longe e
sozinho? Coisa de menino, delírio infantil. E assim deixam o velho
na poltrona da cabeceira, em aparência de sono. Todos se garantem de
que ele não precisa mais cuidado. Mas a ilusão de se estar certo
nasce de todos estarem errados no mesmo momento. Pois, o velho, de
repente, proclama a súbita pergunta:
— Me
desculpem vocês todos: mas, fim ao cabo, quantos anos eu faço?
Riram-se.
O velho malandrava, devia fingir esquecimento. Uma voz se levanta,
lhe anunciando a idade. O velho franze a testa, desconfiado:
— Noventa
e três?
Parecia
atônito. No restante da noite, ele intervalava a cadeira com
repentinos espantos. E voltava:
— Noventa
e três?
Mais
tarde, já as danças se emparelhavam. O velho tropeçando entre os
casais, aborda um alguém: me desculpa, meu filho, em que
ano estamos?
— Noventa
e três, pai.
Não,
corrige o velho. Pergunto em que ano estamos. Mas já ninguém
estava. A multidão, ruidosa, acelera os festejos. Naquela alegria
não cabem avôs. As bebidas correm, as mentes se vão tornando
líquidas.
Finalmente,
trazem o bolo de aniversário. O velho sopra em todo o lado menos no
bolo. Decidem todos juntos apagar as velas, na vez do festejado. O
bolo é cortado rápido, há que regressar à alegria. O velho deve
estar por aí dormindo, dizem, ele descansa assim no meio de qualquer
momento. Mas o avô não dorme. Está quieto sofrendo de saudade dos
seus companheiros da rua, Ditinho mais o gato. Esses, sim, mereciam
pensamento. Só para eles, vadios do jardim, ele se sentia avô.
E
sem que ninguém se aperceba, o aniversariante escapa do aniversário.
Se adentra no jardinzito e se estende no banco, suspirando uma leve
felicidade. O gato desce da paisagem e se enrosca docemente no braço.
O velho lhe tinha reservado um doce roubado à festa. Ditinho chega
depois, vindo de jantar um lixo.
Diante
do banco, o miúdo espreita curioso. Nunca o velho se apresentara tão
tardio. A criança se senta, familiar. Coloca a mão no bolso do avô,
avalia-lhe o volume da carteira e pergunta:
— Então,
quanto temos aqui?
O
velho sorri, leva a mão ao peito e proclama:
— Noventa
e três!
Os
olhos do miúdo relampejam:
— Tudo
isso? Estás rico, vavô.
O
velho concorda, acendendo um sorriso. O menino tinha o coração em
trabalho de parto:
— Com
esse tanto dinheiro hoje vamos fartar por aí: comer, beber,
gargalhotar.
E
se levanta, puxando o velho por uma escura ruela. O avô ainda se
lembra: a minha bengala! Mas Ditinho responde: sua bengala, a partir
de hoje, sou eu. E se afastam os dois, cada vez mais longe dos
ruídos da festa de aniversário. No jardim, o gato esfrega uma
saudade na esquecida bengala. Depois, corre pelo beco escuro,
juntando-se aos dois amigos que, já longe, festejavam o tempo,
comemorando o dia em que todos os homens fazem anos.
Mia
Couto, in Estórias abensonhadas
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