Meu
amigo Jorge Pontivírgula, o nosso Jorojão, me contava seus
mal-desentendidos com a vida. Azares que ele, conforme dizia, sempre
pressentira. Meu amigo se mostrava no que era: um
pressentimentalista. Já vos conto. Antes, porém, ponho em retrato a
alma inteira do dito Jorge.
No
resumo da sua vida, o Jorojão sempre só tinha um querer: evitar
confusão. Nem tantos receios encostavam num homem de tanto tamanho.
Sua altura excedia a de um gigante. Falava-se com ele olhando as
nuvens. Em brincadeira dizíamos: o homem só beija sentado! O tal
Jorojão, nos coloniais tempos, passou pela política como dinheiro
em bolso indigente: circulando pouco e nunca morando. O burburinho da
cidade lhe fazia mal. Para sair pelos matos se ofereceu para
motorista de safáris. Assim se punha distante do mau hálito do
mundo. Não se livrou, porém. Pois lhe aconteceu ter que conduzir
uma delegação de chefes da PIDE aos matos onde estes iriam caçar.
Gente grosseira à caça grossa: que mais ele podia temer? No fim do
dia, um dos autoritosos polícias lhe baixou a ordem de limpar as
armas. Lembra-se de ter tremido:
— As
armas?
Nem
ele mexia sequer nessa palavra, quanto mais. Mas fingiu as contas e
lá esfregou, limpou, oleou. Quando passava o último lustro, um
tiraço deflagrou em plenas ventas de um dos desditosos ditos. O PIDE
caiu que nem coco em dia de ventania.
Passados
que foram trinta anos, o Jorojão se desculpa: foi um tiro
pequenito, um tiritinho de nada. Não é que o gajo esticou mesmo? Eh
pá, nem acredito que tivesse morrido do tiro. Deve ser foi um susto
cardíaco. Ou se calhar tinha a cabeça mal atarraxada.
Volta
a encher o copo, verte a inteira bebida. Depois, fecha os olhos,
estala a língua, afia uma nova alegria. A tristeza já espreitava, à
tona da memória, havia que submergir a alma na cerveja. Balançando
a cadeira me explica: é o embalo do assento que o faz voltar ao
antigamente. Não fosse a cadeira ele já se tinha despedido de toda
a lembrança.
O
balanço já devia ser muito pois ele voltava ao antigamente: depois
do tiro, foi preso por ligações ao terrorismo. Sorte sua: já se
estava em janeiro de 74, não tardou a que o regime fascista
tropeçasse em abril. Aquela manhã lhe permanece bastante
inesquecível. As massas assaltaram a prisão, vão direito à sua
cela e o carregam em braços. Só então ele mediu a sua própria
altura: lhe subiu uma vertigem. Era o herói, justiceiro do povo.
— Veja
lá eu, pá, um gajo que nem se mete... se houvesse um prémio para
mim seria o de descompensação.
Mas
a Revolução lhe atribuía distinção: dirigir uma empresa
nacionalizada. O Jorojão ainda tentou recusar. A recusa ainda dava,
porém, mais confusão. Daí que ele tivesse desempenhado com o maior
empenho. O Jorojão entrava de manhã, não saía à noite. Andava
tudo em cima da linha, as contas da empresa a crescerem em repletos
ganhos. Tudo corria tão bem que começaram a desconfiar. As outras
empresas estatais nem prato tinham e ele abastava-se de sopa? Veio a
brigada do controlo, nem olharam os papéis. Bastou olharem para a
parede do gabinete e verem a arma.
— Esta
arma não está identicamente com as orientações.
— Mas
essa é a arma gloriosa, foi com ela que eu matei o pidalhão, não
se lembram, cuja essa arma fui dado em cerimônia pública?
Não
serviram as explicações. Como se podia saber se era a mesma arma?
Na parede de um gabinete todas as espingardas são pardas. E lhe
levaram preso, acusado de armazenar armamento duvidoso. Ficou na
prisão, mais quieto que pangolim. Ainda se lembra dos infelizes
tempos de desglória, dormindo para esquecer o estômago. Agora, lhe
amargam essas lembranças:
— Já
viu, o senhor? Não sou eu, os assuntos é que se metem com meu
nariz.
E
lá ficou, meses a pavio. Certo dia, espreitando pelas grades vê dar
entrada na prisão um magote de trabalhadores da sua empresa. Pede
audiência ao responsável da prisão, em tento de entender a
presença dos seus subordinados. O chefe do presídio lhe falou com
estranhas deferências:
— O
senhor Jorojão sabia que era para ser solto hoje?
— Solto?
— Sim,
hoje mesmo, em comemoração do Dia Mundial da Meteorologia. Contudo,
vai ter ficar preso mais uns tempos...
E
porquê aquele dito e desfeito? O adiamento da soltura provinha do
seguinte: os ditos trabalhadores, saudosos do diretor aprisionado,
haviam engendrado uma cerimônia de feitiçaria para que o seu
dirigente fosse posto em liberdade. As autoridades interromperam o
ritual e prenderam os participantes, acusados de obscuras
superstições. Já estava a causa em cima do efeito: a libertação
do Jorojão teria que ser suspensa não fossem os créditos da medida
para as feudalistas cerimônias. Simples, lhe explicava o
chefe da prisão. Se você saísse agora haviam de dizer que essas
cerimônias supersticiosas acabam por resultar. E isso
vai contra os princípios do materialismo. Por essa mesma razão, o
distrito adiou as celebrações do Dia Mundial da Meteorologia. E
o desinventado Jorojão lá voltou ao cárcere.
— Já
viu? Me demoraram na prisão por causa do materialismo meteorológico!
Meses
depois é que ele desaguou em rua aberta, quando já ninguém podia
relacionar a soltura com os artimanhosos espíritos. O Jorojão se
lamenta: mordido pelo cão, desdentado pelo ladrão. Ainda hoje não
lhe falem do estado do tempo. Sentado na velha cadeira de balanço,
pesa-lhe a imensidão dos dias. Trabalhar para quê? O trabalho é
como um rio: está-se acabando e o que vem atrás é ainda um rio.
Esticando as pernas com lassidão me pergunta:
— Quem
está balançar: sou eu, é a cadeira ou é o mundo?
Mia
Couto, in
Estórias abensonhadas
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