segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Sapatos de tacão alto

Passou-se nos coloniais tempos, eu ainda antecedia a adolescência. A vida decorria num tal Esturro, bairro cheio de vizinhança. Nesse lugarinho, os portugueses punham sua existência a corar. Aqueles não ascendiam a senhores, mesmo seus sonhos eram de pequena ambição. Se exploravam era arredondando as alheias quinhentas. Se roubavam era para nunca ficarem ricos. Os outros, os verdadeiros senhores, nem eu sabia onde moravam. Com certeza, nem moravam. Morar é um verbo que apenas se usa nos pobres.
Nós morávamos nesse bairrinho de ruas poeirentas, onde o poente começava mais cedo que no resto da cidade. Tudo decorria sem demais. Nosso vizinho era a única, intrigante personagem: homem graúdo, barbalhudo, voz de trovoada. Mas afável, de maneiras e requintes. Lhe chamavam o Zé Paulão. O português trabalhava nos pesados guindastes, em rudes alturas. Seu tipo era o de um galo de hasteada crista, cobridor de vastas capoeiras. Mas vivendo totalmente sozinho. Os homens se admiravam da sua sozinhidez, as mulheres maldiziam aquele desperdício. Todos comentavam: homem tão humano, macho tão dotado de machezas e vivendo apenas de si para si. Nem nunca se lhe testemunhavam nenhumas companhias. Afinal, Deus não deu nozes a ninguém, comentavam as mulheres.
Dele se sabia apenas o condensado sumário: sua esposa fugira. Quais as razões de se desconsumar um tal casamento ninguém sabia. Ela era a tugazinha modesta, filha de lavradores muito campestres. Linda, de despontante idade. Uma vez a vimos, saindo de casa, sustosamente branca. Vinha pelo meio da avenida em certo e exposto perigo. Os carros rangiam, derrapados. A branca moça não parecia nem ouvir. Então, eu vi: a moça chorava, em aberto pranto. Meu pai estancou a nossa viatura e lhe perguntou qual podia ser nossa valência. Mas a mulher não ouvia, sonambulante. Decidiu meu pai escoltar a criatura, protegendo-a dos perigos da avenida, até ela se perder no último escuro. Só então confirmámos: a mulher saía de casa, em muito definitiva partida.
Desse momento em adiante, só a solidão aconchegou o Zé Paulão. O que se semelhava, na pública vizinhança. Só nós sabíamos, porém, o conteúdo da autêntica verdade. No quintal de trás, onde não se punham os alheios olhos, nós víamos, cada vez em quando, roupas de mulher se estendendo no sol. O Paulão, afinal, tinha seus esquemas. Mas ficava em nós o nosso segredo. Minha família queria gozar, exclusiva, aquela revelação. Os outros que sentissem pena do solitário. Nós, sozinhos, conhecíamos as traseiras da realidade.
E outro segredo nós guardávamos: de noite escutávamos os femininos passos do outro lado da parede. Em casa de Zé Paulão, não havia dúvida, tiquetaqueavam sapatos de tacão alto. Rodavam no quarto, corredor e salas noturnas do vizinho.
Grande malandrão, este Paulão!
Minhas tias autenticavam as malícias, riso por trás dos dentes, dentes por trás das mãos. E se falava muito da misteriosa mulher: quem seria que nunca se via entrar nem sair? Minha mãe apostava: consistiria em dona alta, muito mais alta que o Paulão. Os passos pareciam antes de uma gorda, contrafalava minha tia. Vai ver que é tão gorda que não consegue passar a porta, brincava nosso pai. E ria:
É por isso que a gaja não sai nunca!
Eu sonhava: a mulher seria a mais bela, tão bela e fina que só podia circular de noite. Os olhos deste mundo não lhe mereciam. Ou seria uma anja? O Paulão, lá nas alturas do guindaste, a tinha desavisadamente pegado. Certo é que a misteriosa mulher do lado me enchia os sonhos, me engelhava os lençóis e me fazia sair do corpo.
Uma noite eu exercia a minha infância com as miudagens, brincando às aventuras, heróis dos mais pistoleiros filmes. Subindo os telhados, eu escapava de mortal perseguição, enganando as centenas de índios. Em derradeiro instante, saltei para a varanda do vizinho Paulão. Ainda senti as imaginárias setas me raspando a alma. Suspirei e aproveitei para carregar a minha plástica pistola. Então, a luz se acendeu no interior da casa. Me agachei, receando ser confundido com um vulgar larápio. Apanhar uns sopapos do corpãozudo vizinho não seria bom agrado. Me afundei no canto de um escuro. Nem via nem me podia ser visto. Então, meus ouvidos se arrepiaram. Os tacões! A tal misteriosa mulher devia rondar os anexos aposentos. Não pude evitar espreitar. Foi quando vi as longas saias de uma mulher. Me alertei todo: finalmente estava ali, ao alcance de um olhar, a mulher de nossos mistérios. Estava ali aquela que dava tema aos meus desejos. Que se lixassem os índios, que se danasse o Paulão. Me cheguei mais para a luz, desafiando os preceitos da prudência. Agora, se via a sala toda do vizinho. A fascinável dama estava de costas. Não era afinal tão alta, nem tão gorda como as suposições da minha família. De repente, a mulher se virou. Foi o baque, a terra se abrindo num total abismo. Os olhos de Zé Paulão, ornamentados de pinturas, me fitaram num relâmpago. A luz se apagou e eu saltei daquela varanda com o coração hecatombando num poscepício.
Voltei a casa de cabeça desafinada. Me fechei no meu quartinho, manipulando silêncios. Horas mais tarde, no retângulo do jantar, o tema voltou. Nosso vizinho, esse eterno namorador, ainda há pouco lá andavam os tacões. Era meu pai, inaugurando as más-línguas. Vocês o que têm é inveja de não poderem fazer o mesmo, sentenciava minha tia. E se riam, em concerto. Apenas eu me fiquei, calado em deveres de tristeza.
Mais tarde, quando todos dormiam na soltura do sono, ouvi os tacões altos. Em meus olhos sobrou uma funda, inexplicável tristeza. Chorava de quê, afinal? Minha mãe, em suspeitas que apenas as mães são capazes, invadiu o quarto, enchendo-o de luz.
Por que choras, meu filho?
Então anunciei o falecimento de incerta moça que eu amara muito. Ela se retirara de minha esperança, traindo-me com um homem da vizinhança. Minha mãe se fingiu, em seu umbilical condão. E sorriu estranhas suspeições. Me ternurou seus dedos em meus cabelos e disse:
Deixa, amanhã mudas para outro quarto, nunca mais vais escutar esses sapatos…
Mia Couto, in Estórias abensonhadas

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