Pergunto
a mim mesmo por que escrevi que S. é belo. Nenhum dos dois quadros o
mostra assim, e pelo menos o primeiro deveria apresentá-lo
favorecido ou, quando pouco, dar dele uma imagem real, reconhecível,
com todos os ingredientes lisonjeiros de um retrato que será bem
pago. Na verdade, S. não é belo. Mas tem a desenvoltura que eu
sempre desejei ter, um rosto de feições vincadas na exata proporção
e relação que confere aquele jeito sólido que os homens
fisicamente fluidos como eu não podem impedir-se de invejar. Move-se
com à-vontade, senta-se numa cadeira sem olhar para ela e fica logo
bem sentado, sem mais aquele segundo e terceiro acomodamento que
denuncia o constrangimento ou a timidez. Dir-se-ia que nasceu já com
todas as batalhas ganhas ou que dispõe, para lutarem em seu lugar,
de invisíveis combatentes que vão morrendo cuidadosamente, sem
ruído, sem eloquência, alisando o caminho, como se eles próprios
fossem simples ramagens de vassoura. Não creio que S. seja rico
milionário, naquele sentido que hoje merece a designação, mas tem
dinheiro farto. É uma coisa que se sente no próprio modo de acender
o cigarro, na maneira de olhar: o rico nunca vê, nunca repara,
apenas olha, e acende os cigarros com o ar de quem esperaria que já
viessem acesos: o rico acende o cigarro ofendido, isto é, o rico
acende ofendido o cigarro, porque não há, ali, acaso, ninguém que
lho acenda. Creio que S. teria achado natural que eu me precipitasse
ou fizesse o gesto. Mas eu não fumo e sempre tive os olhos
suficientemente agudos para desmontar, para desarticular esse (S.)
pretensioso movimento que vai do empunhar o isqueiro ao disparar a
chama e recolhê-la, primeiro e final movimento de uma voluta que
pode ser, conforme os casos, desenho de adulação, de subserviência,
de cumplicidade, de convite sutil ou brutal para a cama. S. teria
gostado que eu lhe reconhecesse o dinheiro que tem e o poder que lhe
adivinho. Contudo, os artistas praticam por tradição alguns
privilégios que mesmo quando não usam ou usam ao invés mantêm uma
aura romântica de irreverência que confirma o cliente na sua
(provisória) condição subalterna e na sua particular
superioridade. Nessa relação, algo teatral, cada um representa o
seu papel. No fundo, S. ter-me-ia desprezado se eu lhe acendesse o
cigarro, mas, muito pior do que isso, teria ficado logrado se eu o
tivesse feito. Não houve surpresas para nenhum dos lados, e tudo se
passou como convinha.
S.
é de estatura mediana, sólido, em forma perfeita (segundo julgo
ver) para os quarenta anos que parece. Tem os cabelos brancos
suficientes para lhe favorecer o enquadramento do rosto, e daria um
esplêndido modelo para publicidade de produtos simultaneamente
requintados e campestres, como cachimbos, espingardas, fatos de
“tweed” (palavra inglesa que designa um tecido de lã, bastante
grosso e muito maleável, fabricado na Escócia), carros luxuosamente
utilitários, férias na neve ou na Camargue (França, sul). Tem, em
suma, a orografia de rosto que os homens ambicionam porque o cinema
americano a divulgou e porque a ela se liga um certo tipo de mulheres
de cabelos longos, mas que talvez não valha a pena conservar (o
rosto, não as mulheres) por mais tempo do que o "flash"
fotográfico: porque a vida é muito mais feita de banalidade, de
palidez, de barba mal rapada ou mal crescida, de hálito sem
frescura, de cheiro de corpo nem sempre lavado. Talvez este modo de
ser cara que S. tem, olhos, boca, queixo, nariz, raiz do cabelo e
cabelo, sobrancelhas, tom de pele, vincos, expressão, talvez tudo
isto devesse responder culpadamente pelo só borrão confuso que pude
transpor para a tela e que nem no segundo retrato ganhou clareza. Não
que a parecença lá não esteja, não que o primeiro não seja o
fiel retrato desejado e benévolo, não, enfim, que o segundo não
pudesse passar por uma análise psicológica em forma de pintura - em
ambos os casos só eu sei que ambas as telas continuam brancas,
virgens se agradar ao estilo, estragadas para falar com verdade. A
mim mesmo volto a perguntar, porém, por que razão, sendo S. esta
detestação que descrevi, se instalou em mim a obsessão de
compreendê-lo, de descobri-lo, quando outra gente mais interessante,
entre mulheres e homens que retratei, me passou pelos olhos e pelas
mãos ao longo de todos estes anos de medíocre pintura: não
encontro mais explicações que a volta da idade em que estou, que a
humilhação subitamente descoberta de ficar aquém da necessidade,
dessa outra e mais ardente humilhação de ser olhado por cima, de
não ser capaz de responder à ironia com o desprezo ou com sarcasmo.
Tentei destruir este homem quando o pintava, e descobri que não sei
destruir. Escrever, não é outra tentativa de destruição, mas
antes a tentativa de reconstruir tudo pelo lado de dentro, medindo e
pesando todas as engrenagens, as rodas dentadas, aferindo os eixos
milimetricamente, examinando o oscilar silencioso das molas e a
vibração rítmica das moléculas no interior dos aços. Além
disso, não posso impedir-me de detestar S. por aquele olhar frio com
que relanceou o meu atelier na primeira vez que aqui entrou, por
aquele fungar desdenhoso, pelo modo displicente com que me atirou a
mão. Sei muito bem quem sou, um artista de baixa categoria que sabe
do seu ofício mas a quem falta génio, sequer talento, que tem não
mais que uma habilidade cultivada e que percorre sempre os mesmos
sulcos, ou pára junto das mesmas portas, mula puxando a carroça
duma qualquer costumada distribuição, mas, dantes, quando eu
chegava à janela, gostava de ver o céu e o rio, tal como Giotto
gostaria, ou Rembrandt, ou Cézanne. Não tinham muita importância
para mim as diferenças: quando uma nuvem passava devagar, não havia
nenhuma diferença, e quando eu depois estendia o pincel para a tela
inacabada tudo podia acontecer, até mesmo a descoberta de um gênio
só meu. A paz estava-me garantida, o mais que viesse só poderia ser
mais paz ou, quem sabe, a agitação da grande obra. Não esta
espécie de rancor manso mas determinado, não esta escavação pelo
interior da estátua, não este dente agudo e obstinado como o do cão
que morde a trela enquanto olha em redor ansioso, de medo que
regresse quem o prendeu. Juntar mais pormenores da fisionomia de S. é
inútil. Estão aí os dois retratos que dizem quanto basta para o
que menos conta. com outro rigor: que dizem o que não me basta, mas
que satisfazem a quem de fisionomias só cure. O meu trabalho vai
agora ser outro: descobrir tudo da vida de S. e tudo relatar por
escrito, distinguir entre o que é verdade de dentro e pele luzidia,
entre a essência e a fossa, entre a unha tratada e a apara caída da
mesma unha, entre a pupila azul-baço e a secreção seca que o
espelho matinal denuncia no canto do olho. Separar, dividir,
confrontar, compreender. Perceber. Exatamente o que não pude
alcançar nunca enquanto pintei.
José
Saramago, in Manual de pintura e caligrafia
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