Meu
falecido tio Luiz odiava retratos. Jamais apareceu nos álbuns de
família. Quando precisava de fotos para documentos, ia sozinho, em
hora e a estúdio desconhecidos, como se cometesse um ato vergonhoso,
talvez um crime. Um dia, eu lhe perguntei a origem desse mal-estar.
Negou que as fotografias o desnudassem ou lhe roubassem a alma. “Tudo
isso é superstição.” Sua repulsa era de outra ordem: acreditava
que elas revelam o vazio do ser. “Nos retratos, surgimos como os
fantasmas que somos”, me disse.
Trinta
e três anos após a morte de meu tio, leio que Plotino de
Alexandria, o filósofo romano, também não permitia que o
retratassem. Acreditava que, por melhor que fosse um retrato, ele
seria apenas a sombra de uma sombra. Recorria a Platão, para quem
não passamos de vultos esmaecidos de protótipos ideais. Fundador do
neoplatonismo, Plotino pensava que o retrato não passa de uma
duplicação, indecente e inútil, de outra duplicação. Meu tio
Luiz, que se limitava a ler as páginas esportivas dos jornais,
concordava com ele.
Chego
às ideias de Plotino lendo Atlas, belo livro, que combina
textos breves e fortes fotografias, assinado por Jorge Luis Borges e
sua companheira Maria Kodama (Companhia das Letras). A referência ao
filósofo romano surge em “O totem”, capítulo que traz a foto do
fac-símile de um ídolo primitivo do Canadá. Borges define a foto:
“A sombra da sombra de uma sombra”. Imagem tripla, se ela nos
afasta cada vez mais dos ideais, nos aproxima do mundo, a respeito do
qual temos uma inevitável visão falhada.
Em
Atlas, um incansável Borges leva ao extremo sua convicção
de que a literatura nada é, e só por isso, por nada ser, merece
nossa paixão. A tese se confirma (duplica) em outro breve capítulo,
“Esquinas”, ilustrado com a fotografia de uma encantadora esquina
de Buenos Aires. Uma esquina qualquer – sua identidade e
localização, diz Borges, não importam. Fantástico Atlas o
seu, do qual está banida qualquer esperança de registro preciso e
de posição fixa.
Fala
Borges da esquina fotografada. “Pode ser a de Charcas com a Maipu,
a de minha própria casa.” Divaga a respeito daquela esquina
imprecisa: “Imagino-a abarrotada por meus fantasmas,
inextricavelmente entrando e saindo e cruzando-se”. Quase ouço,
atrás da sua, a voz áspera de meu tio. Uma esquina inexistente só
pode ser habitada por um Borges inexistente – um Borges fluido,
este Borges (homem desenhado pelas palavras) que tanto amamos. Também
as fotografias, dizia meu tio Luiz, só abrigam sombras. Nelas a
realidade, que com tanto esforço construímos e com tanto empenho
cultivamos, se evapora. Revela seu caráter incerto e sua
consistência fluida.
Inútil
Atlas, que não serve para nada, que não conduz a lugar
algum. Nos tempos do GPS, ele se torna uma velharia. Para Borges, um
atlas era só um pretexto para a composição de sonhos. Abrimos um
atlas, procuramos alguma coisa, localizamos – e parecemos a salvo.
De que estamos realmente a salvo? De nosso medo de não existir. “Eu
estou aqui”, alguém pode pensar. “Este é meu lugar.” E um
alívio mentiroso nos invade.
Borges,
não: ele usa seu atlas para nos deslocar e nos desconectar. Como se
fosse uma bússola enlouquecida. Fala-nos, por exemplo, de uma ilha
desconhecida, que se perde nas águas do Tigre, “um rio tão lento
que a literatura chegou a chamá-lo de imóvel”. À margem oeste do
Tigre, se situa Bagdá, a cidade lendária que hoje, com desgosto,
associamos aos atentados. Borges faleceu em 1988. A primeira Guerra
do Golfo foi deflagrada em 1991. Não chegou a ter a visão do
inferno. Ainda assim, sua ilha perdida é um sinal de que nem tudo,
mesmo no brando Tigre, está em seu lugar. Onde estará a ilha? Que
mapa, que atlas, poderá localizá-la? Só porque resiste a qualquer
representação, a ilha perdida Borges representa a existência.
O
Atlas de Borges é uma antologia de sonhos pessoais. Mas como
um atlas pode ser pessoal? Não serão todos eles um pouco
fantasiosos? Quando falamos do Tigre ou de Bagdá, esses nomes se
dissolvem em visões que trazemos da infância, sopradas das páginas
das Mil e uma noites. Eu, pessoalmente, quando vejo a Bagdá
em destroços que a televisão me mostra, não consigo acreditar
totalmente nela. As imagens estão ali – e me chocam. Mas alguma
coisa falta. O quê?
Lendo
Borges, aceito um pouco melhor esse sentimento que não sei explicar.
Isso me leva a recordar de uma experiência pessoal recente. Há
alguns meses, depois de muitos anos, voltei a um bairro de
Teresópolis – a Barra do Imbuí – onde passei as férias de
infância. Dizendo melhor: tentei voltar, mas não consegui. O lugar
que me recebeu não combinava com o lugar que guardei. As imagens que
trago comigo são mais fortes e mais convincentes do que aquelas que
a realidade me apresentou. Em um pedaço de meu passado, meu falecido
tio me parece mais vivo do que as coisas realmente existentes. Mais
vivos do que as bombas que explodem às margens do Tigre.
Mesmo
nos atlas mais sérios, quanto haverá de fantasia? Não é a
claridade, mas a sombra que nos aquieta. Em outra visão esfumaçada,
Borges nos fala de dois gregos que conversam. Talvez sejam Sócrates
e Parmênides. Hipótese impossível, já que quando Parmênides
morreu, em 460 a.C., Sócrates não passava de um menino de 9 anos.
Mas isso importa? Podemos confiar nas datas?
Sugere
Borges, pensando nos dois homens: “Convém que nunca venhamos a
saber seus nomes”. Também seu diálogo é abstrato. Falam de mitos
dos quais ambos descreem. Não polemizam. Nada esperam um do outro,
embora saibam que aquela conversa é o único caminho de que dispõem
para chegar à verdade.
Posso
pensar: talvez os dois homens sejam os verdadeiros autores do Atlas
atribuído a Borges e Kodama. Como saber, ao certo, de onde provêm
os acontecimentos? Como detectar, com precisão, a origem das coisas?
Existirá um atlas capaz de, enfim, localizar o mundo em que vivemos?
Volto a meu tio Luiz que, embora cético, acreditava em fantasmas.
Não os via ao longe, a persegui-lo, mas dentro de si.
José
Castello, in Sábados inquietos
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