sábado, 26 de janeiro de 2019

A sombra de uma sombra

Meu falecido tio Luiz odiava retratos. Jamais apareceu nos álbuns de família. Quando precisava de fotos para documentos, ia sozinho, em hora e a estúdio desconhecidos, como se cometesse um ato vergonhoso, talvez um crime. Um dia, eu lhe perguntei a origem desse mal-estar. Negou que as fotografias o desnudassem ou lhe roubassem a alma. “Tudo isso é superstição.” Sua repulsa era de outra ordem: acreditava que elas revelam o vazio do ser. “Nos retratos, surgimos como os fantasmas que somos”, me disse.
Trinta e três anos após a morte de meu tio, leio que Plotino de Alexandria, o filósofo romano, também não permitia que o retratassem. Acreditava que, por melhor que fosse um retrato, ele seria apenas a sombra de uma sombra. Recorria a Platão, para quem não passamos de vultos esmaecidos de protótipos ideais. Fundador do neoplatonismo, Plotino pensava que o retrato não passa de uma duplicação, indecente e inútil, de outra duplicação. Meu tio Luiz, que se limitava a ler as páginas esportivas dos jornais, concordava com ele.
Chego às ideias de Plotino lendo Atlas, belo livro, que combina textos breves e fortes fotografias, assinado por Jorge Luis Borges e sua companheira Maria Kodama (Companhia das Letras). A referência ao filósofo romano surge em “O totem”, capítulo que traz a foto do fac-símile de um ídolo primitivo do Canadá. Borges define a foto: “A sombra da sombra de uma sombra”. Imagem tripla, se ela nos afasta cada vez mais dos ideais, nos aproxima do mundo, a respeito do qual temos uma inevitável visão falhada.
Em Atlas, um incansável Borges leva ao extremo sua convicção de que a literatura nada é, e só por isso, por nada ser, merece nossa paixão. A tese se confirma (duplica) em outro breve capítulo, “Esquinas”, ilustrado com a fotografia de uma encantadora esquina de Buenos Aires. Uma esquina qualquer – sua identidade e localização, diz Borges, não importam. Fantástico Atlas o seu, do qual está banida qualquer esperança de registro preciso e de posição fixa.
Fala Borges da esquina fotografada. “Pode ser a de Charcas com a Maipu, a de minha própria casa.” Divaga a respeito daquela esquina imprecisa: “Imagino-a abarrotada por meus fantasmas, inextricavelmente entrando e saindo e cruzando-se”. Quase ouço, atrás da sua, a voz áspera de meu tio. Uma esquina inexistente só pode ser habitada por um Borges inexistente – um Borges fluido, este Borges (homem desenhado pelas palavras) que tanto amamos. Também as fotografias, dizia meu tio Luiz, só abrigam sombras. Nelas a realidade, que com tanto esforço construímos e com tanto empenho cultivamos, se evapora. Revela seu caráter incerto e sua consistência fluida.
Inútil Atlas, que não serve para nada, que não conduz a lugar algum. Nos tempos do GPS, ele se torna uma velharia. Para Borges, um atlas era só um pretexto para a composição de sonhos. Abrimos um atlas, procuramos alguma coisa, localizamos – e parecemos a salvo. De que estamos realmente a salvo? De nosso medo de não existir. “Eu estou aqui”, alguém pode pensar. “Este é meu lugar.” E um alívio mentiroso nos invade.
Borges, não: ele usa seu atlas para nos deslocar e nos desconectar. Como se fosse uma bússola enlouquecida. Fala-nos, por exemplo, de uma ilha desconhecida, que se perde nas águas do Tigre, “um rio tão lento que a literatura chegou a chamá-lo de imóvel”. À margem oeste do Tigre, se situa Bagdá, a cidade lendária que hoje, com desgosto, associamos aos atentados. Borges faleceu em 1988. A primeira Guerra do Golfo foi deflagrada em 1991. Não chegou a ter a visão do inferno. Ainda assim, sua ilha perdida é um sinal de que nem tudo, mesmo no brando Tigre, está em seu lugar. Onde estará a ilha? Que mapa, que atlas, poderá localizá-la? Só porque resiste a qualquer representação, a ilha perdida Borges representa a existência.
O Atlas de Borges é uma antologia de sonhos pessoais. Mas como um atlas pode ser pessoal? Não serão todos eles um pouco fantasiosos? Quando falamos do Tigre ou de Bagdá, esses nomes se dissolvem em visões que trazemos da infância, sopradas das páginas das Mil e uma noites. Eu, pessoalmente, quando vejo a Bagdá em destroços que a televisão me mostra, não consigo acreditar totalmente nela. As imagens estão ali – e me chocam. Mas alguma coisa falta. O quê?
Lendo Borges, aceito um pouco melhor esse sentimento que não sei explicar. Isso me leva a recordar de uma experiência pessoal recente. Há alguns meses, depois de muitos anos, voltei a um bairro de Teresópolis – a Barra do Imbuí – onde passei as férias de infância. Dizendo melhor: tentei voltar, mas não consegui. O lugar que me recebeu não combinava com o lugar que guardei. As imagens que trago comigo são mais fortes e mais convincentes do que aquelas que a realidade me apresentou. Em um pedaço de meu passado, meu falecido tio me parece mais vivo do que as coisas realmente existentes. Mais vivos do que as bombas que explodem às margens do Tigre.
Mesmo nos atlas mais sérios, quanto haverá de fantasia? Não é a claridade, mas a sombra que nos aquieta. Em outra visão esfumaçada, Borges nos fala de dois gregos que conversam. Talvez sejam Sócrates e Parmênides. Hipótese impossível, já que quando Parmênides morreu, em 460 a.C., Sócrates não passava de um menino de 9 anos. Mas isso importa? Podemos confiar nas datas?
Sugere Borges, pensando nos dois homens: “Convém que nunca venhamos a saber seus nomes”. Também seu diálogo é abstrato. Falam de mitos dos quais ambos descreem. Não polemizam. Nada esperam um do outro, embora saibam que aquela conversa é o único caminho de que dispõem para chegar à verdade.
Posso pensar: talvez os dois homens sejam os verdadeiros autores do Atlas atribuído a Borges e Kodama. Como saber, ao certo, de onde provêm os acontecimentos? Como detectar, com precisão, a origem das coisas? Existirá um atlas capaz de, enfim, localizar o mundo em que vivemos? Volto a meu tio Luiz que, embora cético, acreditava em fantasmas. Não os via ao longe, a persegui-lo, mas dentro de si.
José Castello, in Sábados inquietos

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