quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Premonição

Todo mundo já ouviu falar sobre premonição, já viu um ou dois filmes sobre o assunto ― eu vi um em que o personagem principal é um áugure, um sacerdote da antiga Roma que fazia presságios, previa o futuro a partir do canto e do voo das aves. Intuição, pressentimento, presságio, agouro, é tudo a mesma coisa, isto é, porra nenhuma, pura superstição.
Eu namorava ― quer dizer, comia ― uma garota chamada Madeleine. No dia em que a conheci, eu estava no ponto do ônibus e ela passou dirigindo seu carro e perguntou “quer carona?” e eu aceitei. O ônibus da ilha para a cidade demora um tempão para passar. Dentro do carro me apresentei, “meu nome é José”, e ela respondeu, “o meu é Madeleine”.
Brinquei com ela, “você é a Madeleine do Proust?”. Ela não entendeu a piada. Não gosto de mulher burra, mas perdoei a ignorância dela, ninguém lê Proust e, para falar a verdade, ele é um chato.
Você não vai explicar essa história da Madeleine do… do… como é o nome?”
Proust. É um escritor que num dos seus livros, Em busca do tempo perdido, no original À la recherche du temps perdu ― confesso que eu sou um pouco exibicionista, sou bibliotecário e quando o assunto é livro eu gosto de ostentar os meus conhecimentos, mas creio que todo mundo é assim ―, mas como eu dizia, nesse livro o Proust fala do prazer que invadiu os seus sentidos ao comer uns bolinhos que ele chama de petites madeleines. Assim que comeu, imediatamente as vicissitudes da vida deixaram de incomodá-lo, uma nova sensação o dominou, como se o amor o tivesse enchido com uma essência preciosa, e ele deixou de se sentir medíocre, mortal. De onde vinha aquela alegria tão poderosa, o que significava, como defini-la?”
Que história linda”, disse a Madeleine ao meu lado. (É claro que eu não contei o desenlace desta história, isso fica para depois.)
Foi assim que o nosso romance começou. Em pouco tempo Madeleine estava louca por mim, mas eu sabia que o meu interesse por ela ia durar pouco. Isso nada tem a ver com premonição, eu sabia tudo que ia acontecer porque sempre, depois de comer algumas vezes a dona, eu perco o interesse nela.
Esse é o carma das Madeleines. A do Proust, todos sabem, depois que o francês comeu a segunda, o prazer foi menor, e depois de comer a terceira, ainda menor. Era tempo de parar, ele pensou, a poção perdeu a sua magia. É assim com mulher, depois que você comeu várias vezes, a trepada perde o encanto.
A minha Madeleine é muito bonita, é loura, tem olhos azuis e um corpo perfeito. Eu queria dar o bilhete azul a ela, mas não conseguia, não por ela ser bonita, mas devido à viagem diária para a cidade que fazia no seu carro.
Então, ela me perguntou: “Você não gosta mais de mim?”
Por que você pergunta isso?”
Há mais de um mês que nós… que nós…”
Meu amorzinho, a culpa não é sua, você é a mulher mais atraente do mundo, o problema é que eu não estou bem… Alguma doença… não sei…”
Já foi ao médico?”
Claro.”
O que foi que ele disse?”
O que foi que ele disse?”, repeti a frase dela.
Sim, o que foi que ele disse?”
Fiquei em silêncio, sentindo-me um crápula.
O que foi que ele disse?”
Num arroubo, resolvi confessar tudo.
Eu sou assim, perco o interesse depois de algum tempo e não consigo fazer amor com a mesma mulher…”
Não consegue mais fazer amor comigo?”
Não. Me perdoa.”
Foi então que tive a premonição. Estávamos atravessando a ponte, indo para a cidade, e eu vi, como um áugure romano, que ela ia bater na mureta e jogar o carro no mar.
Ouvi o fragor do violento impacto.
Rubem Fonseca, in Amálgama

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