Todo
mundo já ouviu falar sobre premonição, já viu um ou dois filmes
sobre o assunto ― eu vi um em que o personagem principal é um
áugure, um sacerdote da antiga Roma que fazia presságios, previa o
futuro a partir do canto e do voo das aves. Intuição,
pressentimento, presságio, agouro, é tudo a mesma coisa, isto é,
porra nenhuma, pura superstição.
Eu
namorava ― quer dizer, comia ― uma garota chamada Madeleine. No
dia em que a conheci, eu estava no ponto do ônibus e ela passou
dirigindo seu carro e perguntou “quer carona?” e eu aceitei. O
ônibus da ilha para a cidade demora um tempão para passar. Dentro
do carro me apresentei, “meu nome é José”, e ela respondeu, “o
meu é Madeleine”.
Brinquei
com ela, “você é a Madeleine do Proust?”. Ela não entendeu a
piada. Não gosto de mulher burra, mas perdoei a ignorância dela,
ninguém lê Proust e, para falar a verdade, ele é um chato.
“Você
não vai explicar essa história da Madeleine do… do… como é o
nome?”
“Proust.
É um escritor que num dos seus livros, Em busca do tempo perdido,
no original À la recherche du temps perdu ― confesso que eu
sou um pouco exibicionista, sou bibliotecário e quando o assunto é
livro eu gosto de ostentar os meus conhecimentos, mas creio que todo
mundo é assim ―, mas como eu dizia, nesse livro o Proust fala do
prazer que invadiu os seus sentidos ao comer uns bolinhos que ele
chama de petites madeleines. Assim que comeu, imediatamente as
vicissitudes da vida deixaram de incomodá-lo, uma nova sensação o
dominou, como se o amor o tivesse enchido com uma essência preciosa,
e ele deixou de se sentir medíocre, mortal. De onde vinha aquela
alegria tão poderosa, o que significava, como defini-la?”
“Que
história linda”, disse a Madeleine ao meu lado. (É claro que eu
não contei o desenlace desta história, isso fica para depois.)
Foi
assim que o nosso romance começou. Em pouco tempo Madeleine estava
louca por mim, mas eu sabia que o meu interesse por ela ia durar
pouco. Isso nada tem a ver com premonição, eu sabia tudo que ia
acontecer porque sempre, depois de comer algumas vezes a dona, eu
perco o interesse nela.
Esse
é o carma das Madeleines. A do Proust, todos sabem, depois que o
francês comeu a segunda, o prazer foi menor, e depois de comer a
terceira, ainda menor. Era tempo de parar, ele pensou, a poção
perdeu a sua magia. É assim com mulher, depois que você comeu
várias vezes, a trepada perde o encanto.
A
minha Madeleine é muito bonita, é loura, tem olhos azuis e um corpo
perfeito. Eu queria dar o bilhete azul a ela, mas não conseguia, não
por ela ser bonita, mas devido à viagem diária para a cidade que
fazia no seu carro.
Então,
ela me perguntou: “Você não gosta mais de mim?”
“Por
que você pergunta isso?”
“Há
mais de um mês que nós… que nós…”
“Meu
amorzinho, a culpa não é sua, você é a mulher mais atraente do
mundo, o problema é que eu não estou bem… Alguma doença… não
sei…”
“Já
foi ao médico?”
“Claro.”
“O
que foi que ele disse?”
“O
que foi que ele disse?”, repeti a frase dela.
“Sim,
o que foi que ele disse?”
Fiquei
em silêncio, sentindo-me um crápula.
“O
que foi que ele disse?”
Num
arroubo, resolvi confessar tudo.
“Eu
sou assim, perco o interesse depois de algum tempo e não consigo
fazer amor com a mesma mulher…”
“Não
consegue mais fazer amor comigo?”
“Não.
Me perdoa.”
Foi
então que tive a premonição. Estávamos atravessando a ponte, indo
para a cidade, e eu vi, como um áugure romano, que ela ia bater na
mureta e jogar o carro no mar.
Ouvi
o fragor do violento impacto.
Rubem
Fonseca, in Amálgama
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