terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Os padrinhos da ciência

Estamos vivendo em uma era técnica. Muitas pessoas estão convencidas de que a ciência e a tecnologia encerram as respostas para todas as nossas perguntas. Nós apenas deveríamos deixar os cientistas e técnicos prosseguirem com seu trabalho, e eles criarão o céu aqui na terra.
Mas a ciência não é algo que acontece em algum plano moral ou espiritual superior, acima do restante das atividades humanas. Como todas as outras partes da nossa cultura, é definida por interesses econômicos, políticos e religiosos.
A ciência é uma atividade muito cara. Um biólogo que procura entender o sistema imunológico humano necessita de laboratórios, tubos de ensaio, substâncias químicas e microscópios eletrônicos, sem falar de assistentes de laboratório, eletricistas, encanadores e faxineiros. Um economista que pretende criar modelos de mercados de crédito precisa comprar computadores, configurar bancos de dados gigantes e desenvolver programas complexos de processamento de dados. Um arqueólogo que deseja entender o comportamento dos caçadores-coletores antigos precisa viajar a terras distantes, escavar ruínas antigas e datar artefatos e ossos fossilizados. Tudo isso custa dinheiro.
Ao longo dos últimos 500 anos, a ciência moderna alcançou maravilhas graças, em grande parte, à disposição de governos, negócios, fundações e doadores privados para destinar bilhões de dólares à pesquisa científica. Esses bilhões fizeram muito mais do que representar o universo, mapear o planeta e catalogar o reino animal do que Galileu Galilei, Cristóvão Colombo e Charles Darwin. Se esses gênios em particular nunca tivessem nascido, provavelmente outros teriam tido as mesmas ideias que eles. Mas se o financiamento adequado não estivesse disponível, nenhum brilhantismo intelectual poderia compensar isso. Se Darwin nunca tivesse nascido, por exemplo, hoje atribuiríamos a teoria da evolução a Alfred Russel Wallace, que propôs a ideia de evolução via seleção natural independentemente de Darwin poucos anos depois. Mas se as potências europeias não tivessem financiado pesquisas geográficas, zoológicas e botânicas em todo o mundo, nem Darwin nem Wallace teriam tido acesso aos dados empíricos necessários para desenvolver a teoria da evolução. É provável que não tivessem sequer tentado.
Por que bilhões começaram a fluir dos cofres do governo e dos negócios para os laboratórios e as universidades? Nos círculos acadêmicos, muitos são ingênuos o bastante para acreditar na ciência pura. Acreditam que, em uma atitude altruísta, os governos e os negócios lhes dão dinheiro para que eles se dediquem aos projetos de pesquisa que desejarem. Mas isso está longe de descrever a realidade do financiamento científico.
A maioria dos estudos científicos são financiados porque alguém acredita que eles podem ajudar a alcançar algum objetivo político, econômico ou religioso. Por exemplo, no século XVI, os reis e os banqueiros destinaram muitíssimos recursos para financiar expedições geográficas pelo mundo, mas nem um centavo para estudar a psicologia infantil. Isso porque os reis e os banqueiros supunham que a descoberta de novos conhecimentos geográficos lhes permitiria conquistar novas terras e construir impérios comerciais, ao passo que não conseguiam ver nenhuma vantagem em entender a psicologia infantil.
Nos anos 1940, os governos dos Estados Unidos e da União Soviética destinaram recursos consideráveis ao estudo da física nuclear em vez de à arqueologia subaquática. Eles supuseram que estudar física nuclear lhes permitiria desenvolver novas armas nucleares, ao passo que a arqueologia subaquática dificilmente ajudaria a vencer guerras. Os próprios cientistas nem sempre estão cientes dos interesses políticos, econômicos e religiosos que controlam o fluxo do dinheiro; muitos deles na verdade agem por pura curiosidade intelectual. No entanto, muito raramente são os cientistas que determinam a agenda científica.
Mesmo que quiséssemos financiar ciência pura, não afetada por interesses políticos, econômicos ou religiosos, provavelmente seria impossível. Afinal, nossos recursos são limitados. Peça a um congressista dos Estados Unidos para destinar 1 milhão de dólares adicional à Fundação Nacional da Ciência de seu país a fim de financiar pesquisas elementares, e ele, compreensivelmente, perguntará se o dinheiro não seria mais bem utilizado para financiar a capacitação de professores ou para conceder uma necessária isenção de impostos a uma fábrica em seu distrito que vem enfrentando dificuldades. Para destinar recursos limitados, precisamos responder perguntas do tipo “O que é mais importante?” e “O que é bom?”. E essas não são perguntas científicas. A ciência pode explicar o que existe no mundo, como as coisas funcionam e o que poderia haver no futuro. Por definição, não tem pretensões de saber o que deveria haver no futuro. Somente as religiões e as ideologias procuram responder a essas perguntas.
Considere o seguinte dilema: dois biólogos do mesmo departamento, tendo as mesmas habilidades profissionais, se candidataram a uma bolsa de 1 milhão de dólares para financiar seus projetos de pesquisa atuais. O professor Slughorn quer estudar uma doença que infecta os úberes de vacas, causando uma redução de 10% em sua produção de leite. A professora Sprout quer estudar se as vacas sofrem mentalmente quando são separadas dos bezerros. Presumindo que a quantidade de dinheiro é limitada e que é impossível financiar ambos os projetos de pesquisa, qual dos dois deve ser financiado?
Não há uma resposta científica para essa pergunta. Há apenas respostas políticas, econômicas e religiosas. No mundo de hoje, é óbvio que Slughorn tem maior chance de obter o dinheiro. Não porque as doenças do úbere sejam cientificamente mais interessantes do que a mentalidade bovina, mas porque a indústria leiteira, que está em posição de se beneficiar da pesquisa, tem mais influência política e econômica do que os defensores dos direitos dos animais.
Talvez em uma sociedade hindu estrita, onde as vacas são sagradas, ou em uma sociedade comprometida com os direitos dos animais, a professora Sprout tivesse mais chance. Mas, enquanto viver em uma sociedade que valorize mais o potencial comercial do leite e a saúde de seus cidadãos humanos do que os sentimentos das vacas, faria melhor em redigir sua proposta de pesquisa de modo a torná-la atrativa para tais pressupostos. Por exemplo, ela poderia escrever: “A depressão leva a uma diminuição na produção de leite. Se compreendermos o mundo mental das vacas leiteiras, poderemos desenvolver medicamentos psiquiátricos que melhorarão seu humor, aumentando em até 10% sua produção de leite. Estimo que haja um mercado global anual de 250 milhões de dólares para medicamentos psiquiátricos bovinos”.
A ciência é incapaz de estabelecer suas próprias prioridades. Também é incapaz de determinar o que fazer com suas descobertas. Por exemplo, de uma perspectiva puramente científica, não está claro o que devemos fazer com nossa compreensão cada vez maior da genética. Devemos usar esse conhecimento para curar o câncer, para criar uma raça de super-homens geneticamente modificados ou para criar vacas leiteiras com úberes extragrandes? É óbvio que um governo liberal, um governo comunista, um governo nazista e uma corporação capitalista usariam a mesma descoberta científica com objetivos completamente diferentes, e não há nenhuma razão científica para preferir um uso em detrimento de outro.
Em suma, a pesquisa científica só pode florescer se aliada a alguma religião ou ideologia. A ideologia justifica os custos da pesquisa. Em troca, a ideologia influencia a agenda científica e determina o que fazer com as descobertas. Daí decorre que para compreender como a humanidade chegou a Alamogordo e à Lua – e não a uma série de destinos alternativos – não é suficiente fazer um levantamento das conquistas de físicos, biólogos e sociólogos. Precisamos levar em consideração as forças ideológicas, políticas e econômicas que definem a física, a biologia e a sociologia, empurrando-as em certas direções e negligenciando outras.
Duas forças em particular merecem nossa atenção: o imperialismo e o capitalismo. O ciclo de retroalimentação entre ciência, império e capital provavelmente foi o principal motor da história nos últimos 500 anos. Os capítulos a seguir analisam seu funcionamento. Primeiro examinaremos como as turbinas gêmeas da ciência e do império foram unidas uma à outra e então estudaremos como ambas foram acopladas à máquina de dinheiro do capitalismo.
Yuval Noah Harari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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